Aos Românticos

Eu tenho minhas fases românticas, algumas mais fortes, outras menos. Mas um sentimento que nunca me abandona e minha fé, minha convicção no amor romântico; o amor dedicado à dama, a honra do amor cortês. Sim, sei que estou ultrapassado, mas me sinto bem dessa forma, me dedicando de coração a amar, nos gestos simples e nos atos mais grandiosos que o amor verdadeiro pode gerar.

Encontrei meu conforto na literatura medieval, o supra-sumo do amor cortês. Fiz do Chrétien de Troyes e do Thomas Malory meus amigos de conversa, com quem troco os mesmos ideais. E nos dias de hoje, encontrei mais um cavaleiro perdido no tempo como eu: o Pedro do filme Romance, interpretado pelo Wagner Moura.

O filme conta uma história de amor entre Pedro e Ana (Letícia Sabatella, que está cada dia mais linda),que se conhecem ao montar uma peça de teatro sobre o texto de Tristão e Isolda; a beleza do conto é que mostra pessoas profundamente apaixonadas, o amor no máximo expoente. E sobre essa tela joga a relação da vida real de Ana e Pedro, com seus problemas de entendimento, falhas de diálogo, problemas tão reais como eles mesmos, tão humanos e imperfeitos.

O filme conta e repete várias vezes o conto medieval, e brinca com as imagens de quadros e pinturas que reconheço de ter visto tantas vezes, do lado dos textos que leio. Neste post, coloquei a que considero mais popular, O "Tristam and Isolde" de 1916 de John William Waterhouse.

Gostei do idealismo do Pedro, tão heróico e decidido. Gostei do bom senso da delicada Ana, tão femenina quanto as belas damas dos contos.. Gostei mais ainda da química deles. O filme é regado a vinho, como o vinho do amor que Isolda deu para Tristão no navío, enquanto viajavam para encontrar o Rei Mark. Com certeza, vai entrar para a videoteca de casa, eu vou assistir do lado do meu amor com uma taça do Malbec mais doce que encontrar.

Glatisant

And his name is Sir Palomides, the good knight, that for the most part he followeth the beast Glatisant.
(E seu nome é Sir Palomides, o bom cavaleiro, que a maior parte do tempo seguiu a besta Glatisant.)

Le Morte D'Arthur, Livro X, Capítulo LXIII


Glatisant, a lenda dentro da lenda


Há duas semanas falei dos bloquinhos de montar do Rei Arthur, onde encontrei o assunto da semana passada, Sir Lamorak. Lembram que o nome do brinquedo era "Lamorak e a Besta Assassina"? Então, essa tal besta assassina faz parte do bestiário clássico da lenda arturiana, muito conhecida e com direito a nome e tudo: Glatisant.
O nome vem do barulho dos gritos da besta, uma coisa parecida com 30 cachorros tumultuando quando vão caçar. Como isso não é muito comum nestes dias, especialmente entre os leitores do blog, peço para lembrarem qualquer pet-shop, um passeador de cachorros ou mesmo as madames com 5 peludinhos passeando na rua, e começam a latir desgovernadamente. Multipliquem isso por 6, e terão uma idéia da definição do Glatisant.

A Busca

A besta Glatisant faz parte de uma história secundária do lendário arturiano. O Rei Pellinore é o personagem principal desta história; ele é introduzido nos contos como um rei que nasceu com um propósito, com uma busca (quest) já designada. Normalmente, as missões dos cavaleiros eram circunstanciais, eram demandas que surgiam para atender uma necessidade. Já o Rei Pellinore não precisou perambular pelo mundo para achar sua demanda, sua busca: ela estava pronta assim que ele nasceu.
A família dos Pellinores, desde o pai do pai do Pellinore arturiano, tem por missão capturar viva ou morta a besta Glatisant. Com esse contexto, os mais diversos cavaleiros dão de cara com o Rei Pellinore, geralmente nos bosques encantados, no meio de outras missões pessoais. A lenda é bem recorrente no relacionado a Pellinore; é como conversar com pessoas que você não conhece muito, e quer forçar conversa, ou apenas ser gentil. É como conversar com os vizinhos de prédio no elevador:

- E aí seu Pellinore, tudo bem com o senhor?
- Ah sim, tudo ótimo, e você?
- Na boa, indo pra labuta... já pegou a Glatisant?
- Não, tô atrás dela ainda...
- Ah, tá... boa sorte então...
- Valeu, prá você também.
- ...

Nós vemos o Pellinore envelhecer no livro, e nada de catar a tal da besta assassina dele. Ainda assim, volta e meia algum cavaleiro que estava dando sopa sem nenhuma busca particular, emendava o tempo livre ajudando o Pellinore, acompanhando-o ou mesmo assumindo a busca quando o outro estava fora de combate, seja por estar ferido, em outro país ou qualquer outra desculpa (feriado administrativo, greve, etc.). Entre os cavaleiros que assumiram a busca, entra o Palomides, participante de um triângulo amoroso diferente: Tristão, Isolda e Palomides. É, todo mundo estava a fim da Beau Isolde.
Outro que teve sua fase de caçador da Glatisant foi o Lamorak, por causa de sua amizade com Palomides; eles enxergaram um no outro cavaleiros de grande honra e valor, e assim viraram amigos até o fim.
Existe uma outra interpretação da busca do Pellinore, feita por T.H. White no seu "A Espada na Pedra": ele nos apresenta um Pellinore muito hilário, caricato, um personagem meio lelé das idéias após anos atrás da besta. Avoado, gente boa, ou o clássico louco bom que não faria mal a ninguém.

A Cara do Bicho


Ela foi representada de várias formas, mas vou me manter na versão mais conhecida e popular, a do Malory. Daria um trofeú digno de qualquer parede:
Cabeça e pescoço de uma grande serpente; as patas dianteiras e o torso de um leopardo; os quartos traseiros e o rabo de um leão; e as patas de um cervo. Era uma criatura muito astuta; sempre está um passo à frente dos seus perseguidores. Cada autor enxergou a besta com tamanhos diferentes, desde um pequeno bichinho arisco até uma criatura monumental e ao mesmo tempo pacata, que bebe plácidamente dos lagos no meio do bosque. Eu a imaginei bem parecida com a imagem aqui ao lado: este desenho é de H. J. Ford, feito para ilustrar o "Tales of the Round Table" de 1902.

A Origem

Existem várias versões, como sempre um par delas tentando dar um sentido religioso à existência da criatura ("é o símbolo da confusão dos homens longe de Deus!!!"), mas prefiro a mais tradicional, com todo seu sabor a lenda:

Era uma vez uma princesa, bela e formosa. Ela tinha por irmão o mais belo príncipe que o mundo conheceu; era tão belo e galante como nenhum outro. Sua beleza era tal que sua irmã sentiu desejos de mulher com seu irmão príncipe; o desejava, o queria para ela. Confessou seu íntimo desejo para seu irmão, mas a nobreza dele o impediu de aceitar a desonrosa proposta, e recusou a oferta da princesa.
Perdida no desespero, ela invocou um demônio, ao que pediu seu ardente desejo de conhecer seu irmão na intimidade. O demônio ouviu atentamente, e com toda sua maldade, colocou apenas uma condição: a princesa devia se deitar com o demônio primeiro, e somente depois poderia ter seu príncipe irmão na cama.
O feitiço se virou contra a princesa, e depois de se deitar com o demônio, todo o amor que tinha pelo seu irmão virou ódio, rancor, desprezo. Ela engravidou do demônio, e no seu ódio acusou o próprio irmão de estupro. O príncipe foi condenado à morte, mas antes de morrer profetizou que da irmã nasceria uma criatura de aspecto horrível, um monstro. Assim nasce o Glatisant, que foge para a floresta. No fim, a princesa confessa sua armação, e é condenada a morte também.

É, a história não é para criança dormir, mas é bem a cara das histórias medievais. As primeiras menções da criatura aparecem no Perlezvaus, um romance de século 13, e posteriormente no Merlin, mas quem resgatou a imagem da Glatisant foi Malory, e por isso fiz questão de trazer para vocês a versão dele.

Até a semana que vem!

Sir Lamorak de Galis

Na semana passada mostrei alguns kits de bloquinhos de montar inspirados na lenda arturiana; mas um detalhe deveria ter chamado a atenção dos leitores. Um dos kits que mostrei tem por nome "Lamorak e a besta assassina". Afinal, vocês sabem quem é Lamorak?


O Ilustre Desconhecido


Dependendo para quem vocês perguntarem, Lamorak é um completo desconhecido, ou um personagem fundamental na lenda arturiana, mesmo que desenvolva um papel de coadjuvante. Esta diferença gritante de opinião condiz com a fonte consultada; Sir Lamorak de Galis surgiu como um personagem capaz de dar nexo a histórias que a princípio não teriam relação nenhuma.


Vejam só:

A um tempo já escrevi sobre o cavaleiro da charrete, história que viu nascer o Lancelot cavaleiresco e com ele o romance com Guinevere. Esta história foi contada por Chrétien de Troyes, onde Lancelot e Gawain partem para resgatar Guinevere, refém de Meliagrance. Gawain fracassa ao tentar atravessar a Ponte Sob-a-Água, enquanto Lancelot faz a proeza de atravessar a Ponte da Espada e consegue resgatar Guinevere.


Também escrevi sobre um conto muito mais antigo, o de Tristão e Isolda. Com o tempo o conto foi se transformando, até chegar no ponto no qual nosso herói Tristão teve "upgrade" para cavaleiro da távola redonda. Quer dizer, o conto foi incorporado ao lendário dos contos arturianos.


Estes dois contos, totalmente desconexos, acabaram se entrelaçando no texto do Thomas Malory. Sir Lamorak é mencionado pela primeira vez no texto inglês, e com isso um novo sentido foi dado à historia toda. Este novo cavaleiro serve como elemento de liga entre inúmeras histórias; ele pode perfeitamente ser removido sem afetar o desfecho das trilhas principais, mas acaba dando um sentido adicional, um contexto mais rico.


Agora posso me explicar melhor sobre o ilustre desconhecido: para a molecada inglesa, o Thomas Malory é o equivalente a um Shakespeare arturiano; é parte fundamental da história literária do idioma inglês, e com certeza material de estudo para azucrinar crianças levadas. Acho que o melhor equivalente na língua portuguesa seja Camões, cujo valor literário é inestimável. É a riqueza de preservar um texto antigo na sua essência. Por outro lado, quem nunca leu Malory ou o fez superficialmente, conhece provavelmente o roteiro base da lenda arturiana: Arthur puxa a espada, vira rei, casa com Guinevere, tem o rala-e-rola com Lancelot, surge Mordred, todo mundo morre.


É mais ou menos como ver os filmes do Harry Potter sem ler os livros; se pega a idéia principal do livro, mas somem todas as histórias paralelas que engordam o texto e enriquecem a leitura.


Afinal, quem é Lamorak?


Filho do Rei Pellinore, ele é o terceiro cavaleiro mais importante da vertente cavaleiresca ou romântica do texto do Malory, apenas atrás de Tristão e Lancelot, como segundo e primeiro respectivamente (embora eu acho que Gawain era para estar em segundo lugar, e que o Tristão está de penetra na lista).


Entre muitas aventuras, enfrentou 30 cavaleiros sozinho, até chegar Tristão para ajudá-lo; Lamorak e Tristão se enfrentaram várias vezes, até chegarem a um acordo de cavaleiros e cada um tomar seu rumo.


A história mais importante e cabeluda envolvendo Sir Lamorak é seu romance com a rainha de Ockney, Morgause, viúva do Rei Lot.


O detalhe bizarro da história é que o Rei Lot foi morto pelo Rei Pellinore, pai do Lamorak... Os filhos de Lot e Morgause acabaram sabendo do rolo de Lamorak e sua mãe. Assim, Gawain mandou Gaheris ficar de tocaia para pegá-los no flagra. Encontrou os dois nús na cama, e os atacou. Morgause morreu de forma nada romântica (sem spoilers desta vez...), mas a sorte de Lamorak não seria decidida nesse quarto. Para Gaheris, seria uma desonra matar um cavaleiro desarmado, e por isso o deixou ir.


A rixa entre os filhos do Rei Lot e Lamorak continuou por um longo tempo, com várias tentativas de assassinar Lamorak. Após tantas tentativas, era inevitável que isso acontecesse, fato que terminou de sujar a honra dos filhos de Lot. Só como detalhe, não esqueçam que Mordred era irmão de criação de Gawain, Gaheris, Agravain... E todos lembram como acabou o encontro entre Arthur e Mordred. Os problemas entre Arthur e os filhos de Lot são uma constante nos contos de Malory.


O Nexo


O que no fim não contei ainda é o papel de junção feito por Lamorak. No conto do seqüestro de Guinevere por Meliagrance, Lamorak encontra com Lancelot na bosque, e com muitos outros cavaleiros de diferentes histórias. Por um lado, Lamorak escuta Meliagrance dentro de uma capela, pedindo que Guinevere perceba seu amor e se apaixone por ele; Lamorak encontra mais tarde o Meliagrance no bosque, e diz que eles deviam justar, porque não concordava que Guinevere fosse a mais bela. Para ele, esse lugar era de Morgause. E assim os dois brigaram até aparecer Tristão, que os separou.


Em outras partes do conto, Tristão e Lamorak se encontram, brigam, se amigam, se encontram novamente, arranjam uma coisa qualquer para brigar, se separam de novo, e por aí vai. Quando Lamorak morre por obra de Gawain e seus irmãos, Tristão estava amiguinho do Lamorak, e lamentou muito sua morte. Ele se encontrou com os filhos de Lot em um torneio, e depois de um bate-boca o Tristão caiu fora, mas Agravain e Gaheris não se conformaram e foram atrás dele. Tristão acabou vencendo os dois, e seguiu seu caminho.


Assim, Lamorak é escalado no livro muitas vezes para servir de apoio ao roteiro, vencendo muitas justas, se metendo em muitas encrencas, e dando um sabor diferente à versão então conhecida de Troyes. Portanto, Lamorak é uma figura bem conhecida nos países da Grã-Bretanha, mas um bom desconhecido fora dela. Legal, né?


Até a semana que vem!


Mundo de Brinquedo

Eu era uma criança complicada. Não que fosse uma criança que dava trabalho ou que meus pais reclamassem de mim, mas eram meus problemas de saúde que complicavam minha existência, e a dos que estavam à minha volta. Tive vários probleminhas, alguns normais de toda criança, outros um tanto mais graves; o fato é que fiquei muito tempo de cama, e mais tempo ainda dentro de casa, quando era para brincar com outras crianças, correr e me desenvolver no físico.

Como isso não aconteceu, acabei desenvolvendo mais o lado intelectual; brinquei muito de bloquinhos de montar, tanto que meus bloquinhos sempre chegavam ao fim da sua vida sem conseguir colar mais um nos outros; eles simplesmente desmontavam.

Tenho uma saudade boa desses tempos de engenheiro de idéias. Eu era capaz de criar pequenos mundos, onde carros, aviões, dinossauros e tudo o que criança adora surgia das minhas mãos. Nessa época, eu não era ciente do meu gosto por lendas arturianas; hoje penso como teria sido fazer castelos, pontes, catapultas e tantas outras estruturas.

Bom, com toda essa historinha que contei talvez tenham agora a dimensão do que para mim foi uma grata descoberta: a Mega Bloks (marca de bloquinhos de montar muito popular aqui no Brasil) lançou uma coleção sobre a lenda arturiana.

Lamorak e A Besta Assassina

Além do lado fantasioso e épico que espero encontrar em um brinquedo, me chamou muito a atenção ver nomes um pouco mais obscuros da lenda, nomes não tão conhecidos como os do Arthur, Guinevere e Lancelot. O mais legal disso é despertar na criançada a curiosidade por saber mais, e quem sabe forçar os pais a procurar pela origem das lendas.


Batalha na Ponte

Não vi nenhum destes brinquedos de perto, mas podem ter certeza que vou prestar mais atenção da próxima vez que visitar uma loja de brinquedos.

Até a semana que vem!

Fazendo História

No post da semana passada falei um pouco sobre Geoffrey de Monmouth, e como seu trabalho reviveu as lembranças de um tal Rei Uther, pai de um tal Rei Arthur. Eu disse também que ele usou como fonte de informações textos antigos, dos séculos V e VI; aliás, essa foi uma as primeiras coisas que disse no blog, em Junho de 2007.

Essas tais origens da lenda arturiana sempre foram ponto de discussão. Sempre que falo sobre contos como os de Tristão e Isolda, ou mesmo do Eric e Enide, comento que a base dessas histórias são antigas lendas celtas com outros personagens, mas seguindo a mesma linha argumental. Já a lenda arturiana é por sí uma compilação de histórias. Sinto uma pitadinha de orgulho do post que escrevi na Páscoa sobre o Ciclo Vulgato, que exemplifica perfeitamente o que estou dizendo.

Ontem, eram 11 da noite, estava cansado, e ainda sem idéias sobre meu post de hoje. Decidi resgatar da prateleira o livrão do John Matthews, e mesmo com o cansaço complicando minha leitura acabei descobrindo sobre o que falar hoje: Quem inspirou Geoffrey?

Antes de continuar, não é um espanto ter linkado 5 vezes meu próprio blog? Será que os assuntos estão esgotando? Bom, no seu livro o John conta que com a partida do último galeão romano da ilha da Bretanha no século V, o país ficou meio que às moscas. O império romano estava recuando, perdendo terreno e procurando segurança na sua capital; os territórios conquistados na Espanha e na Armenia ganhavam novos donos, novos conquistadores.

Restaram até nossos dias pouquíssimos textos da época que contem pra gente como foi aquele período; mas do que sobrou, podemos observar alguns fatores que mais tarde seriam decisivos. Os romanos criaram novas estradas, interligando cidades; eles levaram ao pé da letra que o caminho mais curto entre dois pontos é uma linha reta, e fizeram estradas perfeitamente retas. As vezes me vejo pensando nisso enquanto estou preso no tránsito, e lembrando da minha Buenos Aires plana e de ruas perfeitamente paralelas. Os romanos tinham razão!

Junto com as estradas, os romanos trouxeram um sistema de governo pseudo-autónomo, uma escala hierárquica onde as cidades podiam se reger por conta própria, e contavam com recursos externos para crescer conforme demanda. Nisso as estradas aportaram as rotas de comércio, fundamentais para o crescimento destas cidades com o abastecimento e a exportação da produção local.

Com o tempo, os bretões começaram a ficar mais romanizados, ou como o John disse, "mais romanos que a própria Roma". A implantação do governo autónomo funcionou, e as regras de comum acordo entre cidades fizeram a economia prosperar.

Logicamente, com a partida do imperio romano, o que estava ruim ficou pior. É fácil imaginar um disse-me-disse de anos até de fato os romanos se retirarem; quantas pessoas de confiança não disseram para seus amigos mais próximos alguma confissão sigilosa sobre o futuro do país. Mas o fato é que muitos romanos acabaram fazendo sua vida por lá, casando com nativos da ilha e formando novas famílias, ou mesmo usufruindo as terras que conquistaram como pagamento dos serviços prestados ao exército romano, buscando o sossego de produzir na sua terra. Muitas pessoas decidiram não trocar as ondulações verdes e os profundos bosques da ilha bretã pela barulhenta e fedida Roma.

Entre os terratenentes que ficaram, existiam vários reis de tribos, interessados em ganhar status e poder com a partida dos romanos. Todos, sem distinção, cobiçavam a idéia de serem nomeados o "High King", com so outros reis ao serviço deles. Assim começou a Dark Age na Bretanha. De todos estes reis, teve um que finalmente obteve sucesso nesta empreitada; seu nome era Vortigern.

Este Vortigern, por incrível que pareça, nada tem a ver com o Vortigern da lenda arturiana, aquele da torre dos dragões. O que sabemos dele vem (finalmente!!) dos textos que sobraram da época; autores dos que comentei brevemente em um post ou outro.

Existem três fontes de onde tirar informação, nenhuma delas particularmente confiável, e eventualmente até contraditórias em certos aspectos. A primeira fonte, a mais extensa, e provavelmente a mais confiável seja a do monge Gildas, cujos escritos falam de fatos ocorridos no máximo 50 anos antes do texto. Seu trabalho é conhecido pelo nome de "De Excidio et Conquestu Britanniae" (queda e conquista da Bretanha), e pode ser definida como um protesto contra o tiranismo. Gildas coloca a culpa em Vortigern para tudo, chamando-o de "promotor dos costumes pagãos" em uma terra que recentemente tinha entrado para o Cristianismo. Olha só:

Assim todos os conselheiros, junto com o orgulhoso tirano Gurthigern (Vortigern), o Rei Bretão, estavam tão cegos que para proteger seu país acabaram selando seu fim convidando para o lado deles (como lobos no meio de ovelhas) os violentos e impíos saxões, uma raça odiada por Deus e pelos homens, para repelir os invasores do norte (pictos, escoceses..).

Tirando o exagero literário do Gildas, fica claro que o país estava indefeso, pronto para o festim de qualquer conquistador. A segunda fonte é o monge Nennius e seu Historia Brittonum, o texto dele mais tardío (séc. VII) e um pouco diferente do texto do Gildas, embora relate os mesmos fatos. Nas palavras do Nennius, é um apanhado do que conseguiu achar, misturando textos vários às tradições que sobreviveram ao tempo.

Por anos os Bretões viveram com medo. Vortigern era rei, e durante seu reinado foi ameaçado por pictos e escoceses. Nesse tempo, três navios vindos da Germania trouxeram grandes homens, entre eles os irmãos Hengist e Horsa, filhos de Guietgils, filho de Guitta, filho de Wodin...(...) filho de Geta, o que os faz filhos de Deus, não o nosso Deus dos Deuses, Amém, mas do Deus dos exércitos, que eles idolatram. Vortigern os recebeu de braços abertos, e lhes entregou a ilha que eles chamaram de Thanet, que os Bretões chamam Rudhim...

De novo, é o Vortigern o grande vilão quem recebeu os saxões todo feliz e contente, embora o contexto diz que eram homens vindos de navio. Provavelmente, exilados do próprio país por crimes ou coisa parecida, mas isso nunca saberemos ao certo, acho. Era comum entre os saxões se mostrar descendentes de deuses (neste caso Wodin), o que seria um símbolo de status e reconhecimento, e fama claro.

A última referência da época vem do "The History of the English Church and People" do Venerable Bede. Muito bem, pausa aqui. Como assim, Venerable?

Conforme ao diccionário Longman de cultura inglesa, Venerable é o equivalente a Archdeacon. Eu já ouvi falar de Archbishop (arcebispo) mas nunca de Archdeacon (arcediácono). Até onde sei, diácono é o cargo de um oficial da igreja imediatamente abaixo de Padre, portanto, o que sería um Arcediácono? Quem souber favor responda nos comentários; eu vou chamar de Venerable, como na Inglaterra mesmo.

O Venerable Bede é considerado um dos mais precisos relatores do Dark-Age, e tem tudo para ser contemporâneo ao Gildas e ao Nennius. Seu livro, escrito em 731 dC, conta o seguinte:

No ano 449 do nosso Senhor, os Anglos e os Saxões vieram a Bretanha por convite do rei Vortigern em três grandes navíos, e ganharam terras no leste da ilha com a condição de proteger o país; mas sua verdadeira intenção era atacá-lo.

Os três textos concordam em certos trechos. Os guerreiros germânicos chegaram em três navios, Vortigern lhes pagou por proteção. Não era a primeira vez que os bretões negociaram com invasores, dando terras para que de certa forma sossegassem e sirvam de primeira fronteira. A única certeza é que de fato Vortigern ou seus assessores calcularam errado onde estavam se metendo.

Gildas, Nennius e Bede são o que nos restou de base sobre o Arthur histórico, a provável origem real do Arthur de ficção. E com essa colaboração imprevista, estes homens não somente contaram a história, também a fizeram.

Até a semana que vem!