Chrétien de Troyes

Romances da Távola Redonda

A semana passada não consegui postar, como expliquei no breve comentário que pendurei. Somente cheguei em casa no Domingo à noite, e assim não tive como pesquisar, e ainda menos postar. Pedidas as desculpas e dadas as explicações, posso contar um pouco sobre o post de hoje, e a pesquisa que venho fazendo já faz um par de horas.
Levei dois livros comigo na viagem para Buenos Aires, porém meu tempo livre para leitura (no avião, por exemplo) se concentrou em apenas um deles, "Romances da Távola Redonda" de Chrétien de Troyes. Decidi falar do autor, ou melhor, do trabalho dele e do esforço para conhecermos hoje sobre seu trabalho.

Este livro contém quatro histórias, duas resumidas e duas completas:

Eric e Enide;
Cliges, ou a que se fingiu de morta;
Lancelot, o cavaleiro da charrete;
Ivain, o cavaleiro do leão.

Ele deve ter nascido por volta de 1135 em Champagne, perto da região de Troyes. Ao todo escreveu 7 trabalhos, 6 deles dedicados à lenda arturiana, onde os quatro mencionados acima compõem o ciclo amoroso do autor. É uma pena que até hoje não foi achado o primeiro Tristão, com certeza de autoria dele.

Chrétien é tido como maior autor e símbolo da era medieval e dos romances arturianos franceses, conhecidos também como romances corteses. Devemos a ele a introdução de personagens fundamentais, como Gawain e Lancelot; e da mente dele surgiram partes da lenda tão importantes como o graal, e o nome do reino do rei Arthur, Camelot. Até então, ninguém tinha dado nome às terras de Logres.

Uma coisa que é certa na vida de Chrétien é que trabalhou alternadamente sob dois patronatos, a corte de Champagne e a de Flandres. A corte de Champagne devia ser muito tentadora pela figura da rainha Leonor de Aquitânia, uma mulher de cultura esplêndida. Embora não tenha conseguido o protetorado da rainha Leonor, acabou chegando a Champagne através do patronato de Marie, filha de Leonor, quem propôs para ele o desafio de escrever a historia de Lancelot, o cavaleiro da charrete. Ele não terminou esta historia, que foi finalizada por um contemporâneo dele mas de talento muito menor, chamado Geoffroy de Lagny.
Com a morte do seu patronato em 1181, Chrétien buscou amparo em Flandres, que mantinha relações assíduas com Champagne, e era provavelmente a corte mais rica e predisposta a colaborar com pessoas dedicadas a empreitadas de cunho artístico. Foi lá que empreendeu o trabalho de escrever Perceval, mas que infelizmente não finalizou, falecendo antes de concluí-lo. Quatro autores de talentos variados completaram a obra, acrescentando umas 54000 linhas aos 9000 versos escritos por Chrétien.

Os livros dele foram escritos em verso, com uma poesia em versos de 8 sílabas, cujas rimas acontecem em pares. Estes versos foram compostos em francês antigo, criando um precedente na literatura; até então, estes textos eram compostos em latim. A riqueza destes versos ainda é percebida nas traduções que vieram depois, até na conversão do texto para o formato de prosa.

O livro que tenho em mãos é uma tradução ao idioma português, em formato de prosa. Este livro tem uma ótima introdução, explicando contextos históricos e descrevendo de maneira preciosa a riqueza do texto de Chrétien. É verdade que perdemos muito ao passar um texto em versos para um formato contínuo como a prosa, mas acho que perderíamos muito mais em uma pobre tradução de versos apenas para criar rimas tolas. Isto já acontece só de traduzir os versos do francês antigo para o moderno; ainda assim, o talento de Chrétien transparece e sobrevive a todo este processo, e podemos sentir em alguns momentos na leitura a existência de um texto muito mais rico, uma presença maior que aquela composta apenas pelas palavras à nossa frente.


Como traduzir versos assim?

Cerf chassé qui de soif alainne
ne désire tant la fontaine
n'éperviers ne vient à reclain
si volontiers, quand il a faim
que plus volontiers ne venissent
A ce que nu entretenissent...

(Cervo acossado que de sede ofega /
não deseja tanto a fonte / nem gavião
retorna ao reclamo /de tão bom grado,
quando tem fome / como (os amantes)
desejam /se conhecer nus...)


E termina com:

En ce vouloir m'a mon coeur mis
- Et qui le coeur, beau doux ami?
Dame, mes yeux - Et les yeux qui?-
La grand beauté qu'en vous je vis

(Nesse querer meu coração me pôs /
- E quem pôs o coração, mui doce amigo? /
- Meus olhos, Senhora / - E quem pôs os olhos?
/ - A grande beleza que vi em vós.)

É por este motivo que a prosa vira nossa aliada neste trabalho, dando aos tradutores a possibilidade de trazer a poesia nas palavras, e não nos versos.

Os Manuscritos


O trabalho de um grupo de pessoas em compilar e recopilar os poucos manuscritos que sobreviveram até hoje permite comparar as edições da época medieval das histórias de Chrétien; este trabalho ganhou o nome de Projeto Princeton Charrette. Não vou contar muito mais sobre o projeto aqui (para isso o link), mas só posso dizer que me admirei muito de poder comparar os versos dos manuscritos com o livro que tenho em mãos, e vou compartir com vocês essa experiência nos próximos parágrafos.

Lancelot

A história do cavaleiro da charrete conta a lenda de Lancelot, e sua busca pela rainha Guinevere em terras distantes. Suas crenças e devoção pela rainha são colocadas à prova várias vezes na história.
A tal charrete tem participação apenas no começo da história, e representa o tropeço de Lancelot durante sua busca. Os presidiários e pessoas condenadas eram levadas de charrete em lugares públicos, para provocar escárnio. O amor de Lancelot é colocado à prova ao ser convidado a subir na charrete para obter informações de sua querida rainha, e após hesitar uns segundos, ele decide se submeter a isto com tal de conseguir cumprir sua busca. Cabe mencionar que o nome de Lancelot foi revelado com a história bem avançada, mais ou menos pelo verso 6000. Até então, era apenas um cavaleiro sem nome.

Como disse há pouco, é muito interessante comparar os manuscritos originais com os textos traduzidos para o português. No começo da história, é revelado o vilão desta forma:

A tant ez vos un chevalier
Qui vint a cort molt acesmez,
De totes ses armes armez.
Li chevaliers a tel conroi
S'an vint jusque devant le roi
La ou antre ses barons sist,
Nel salua pas, einz li dist:
Rois Artus, j'ai en ma prison
De ta terre et de ta maison
Chevaliers, dames et puceles,
Mes ne t'an di pas les noveles
Por ce que jes te vuelle randre;
Einçois te voel dire et aprandre
Que tu n'as force ne avoir
Par quoi tu les puisses ravoir;
Et saches bien qu'ainsi morras
Que ja aidier ne lor porras.
Li rois respont qu'il li estuet
Sofrir, s'amander ne le puet,
Mes molt l'an poise duremant.


Em português "prosa", ficou assim:
Sobreveio então um cavaleiro armado com todas as armas. Assim aprestado, caminhou até diante do rei. Não o saudou, apenas disse:
Rei Arthur, retenho em meu poder uma parte da tua terra e da gente da tua casa: cavaleiros, damas e donzelas. Mas não te dou tais novas com intenção de os devolver. Ao contrário, quero informar que não tens força nem bem com que os possas reaver. E fica sabendo que morrerás sem os conseguir socorrer.
O rei responde que terá de sofrer tal desventura, já que não lhe pode remediar. Grande porém será seu pesar.
...

O legal disso é que mesmo quem não conhece ou domina o francês, consegue encontrar a beleza dos versos escondida na tradução, e confirma isso ao ver o texto original.

O que não entendi da história é o preconceito com os anões. É um fato constante durante todas as histórias que os anões são sacanas, e Chrétien não foi nem um pouco delicado para descrever isso:

Li chevaliers a pié, sanz lance,
Aprés la charrete s'avance
Et voit un nain sur les limons,
Qui tenoit come charretons
Une longue verge an sa main.
Et li chevaliers dit au nain:
Nains, fet il, por Deu, car me di
Se tu as veü par ici
Passer ma dame la reïne.
Li nains cuiverz de pute orine
Ne l'an vost noveles conter,
Einz li dist: Se tu viax monter
Sor la charrete que je main,
Savoir porras jusqu'a demain
Que la reïne est devenue.


E na tradução:

O cavaleiro a pé, sem lança, aproxima-se então da charrete e vê sobre os varais um anão que segurava como um charreteiro uma longa vara na mão.
Diz o cavaleiro ao anão:
- Anão, dize-me, por Deus, não viste passar por aqui minha senhora a rainha?
O anão, filho da p_ _ _ , não quis lhe dar novas, mas respondeu:
- Se quiseres subir na charrete que conduzo, podereis saber até amanhã o que foi feito da rainha.

Então.. eu disse para mim mesmo, "Isso aqui foi erro de tradução. Nem a pau chamaram o anão de filho da p_ _ _ no original, imagina!!". Não é que me enganei? Olhem só o texto a partir do verso 347:



Seus comentários abaixo. Semana que vem: Lancelot e Guinevere, ou o conto do cavaleiro da charrete!!

7 comentários:

Marion disse...

Adorei o post. Interessante refletir sobre como a história do Rei Arthur chegou até os dias de hoje. Mesmo tendo sua forma alterada não perdeu-se a força e a beleza dos palavras empregadas para contar as histórias. Eu li " Romances da Távola Redonda". Lembro que faz um tempinho já que peguei o livro para ler e saber pq o Rei Arthur tanto te encantava. É um belo livro e agora sei que a tradução feita para o Português foi criteriosamente feita e que preserva o estilo do texto original.
Adorei as imagens dos livros antigos.Estes livros são realmente um tesouro.
Beijos e parabéns pelo post!

Andrea disse...

Eu sempre dizia a meus alunos que quem quer ler mesmo poesia tem que ler o original. A métrica sempre se perde na tradução e a gente tem de se concormar de receber mesmo só as idéias.

Blog cada vez mais luxo. Bjs

Pedrita disse...

muito interessante esse livro. uma vez peguei em uma biblioteca um livro que não conseguia ler. aí fui procurar em outra o mesmo livro com outro tradutor e foi uma grande diferença. beijos, pedrita

Anônimo disse...

É meio triste saber que nunca saberemos com certeza absoluta como surgiu a lenda mais legal do mundo :-) rs. Mas eu seria incapaz de ler a história em versos, ainda mais numa linguagem complicada. Eu não gosto de versos, mas pelo jeito a prosa ficou muito bem adaptada!

Wally disse...

Gente, obrigado MESMO pelos comentarios. É muito gratificante ver o contador de visitas aumentando, e mais ainda ver comentarios, criticas, ver as pessoas se interessando pelo que escrevo. Isso motiva muito, e motiva a pesquisar para valer como faço a cada novo post. é um desafio escrever um blog neste estilo, mas é imensamente gratificante ver os resultados.
Obrigado!!!!!
Nem sempre comento, mas visito seus blogs sempre que posso, geralmente tiro o atraso de posts no fim de semana, quando posso dedicar o tempo que leva. Como blogger, sei o esforço que representa escrever, e por isso valoro cada post.
Vou me cobrar o fato de comentar mais seguido nos seus blogs!

MEIER F. C. disse...

uma vez vi esses manuscritos em um livro da editora melhoramentos, de capa vermelha, mas eu não me lembro o nome, e do mesmo livro que vocÊ tirou?
vc sabe o nome?
ou se for de outro, pf, qual?
abraços
Meier

Wally disse...

@ meier:
Não conheço o livro que você mencionou, mas estas imagens são muito conhecidas já que são a referência mestre de todos os textos de Troyes que sobreviveram até nossos dias.
As imagens e leituras para o francês que aparecem no post vieram do Projeto Princeton Charrete, cujo link faz parte do post. Nesse site encontrará todas as imagens com sua interpretação, incluindo não somente os scans dos textos como também das pequenas litografias que acompanham alguns episódios.
Obrigado pela visita!