Érec et Énide: Parte 2

Nota: Este post vem como continuação da Introdução ao conto de Eric e Enide (Parte 1).

O Cervo Branco

No dia da Páscoa, no novo tempo, o rei Artur reuniu a corte em seu castelo de Cardigan. (...) Antes de despedir a assembléia, o rei anunciou que queria caçar o Cervo Branco, para reviver o costume. Isto não agradou a sire Gawain. Assim que ouviu as palavras do rei, disse:

- Sire, de tal caça ninguém vos agradecerá nem dará graça. Sabemos todos que quem mata o Cervo Branco tem o direito de dar um beijo na mais bela jovem da vossa corte. Respeitar esse uso pode dar azo a grande confusão, pois há bem aqui quinhentas damizelas de alta linhagem, todas filhas de reis, belas e recatadas. Cada uma tem por amigo um cavaleiro. Ele pretenderá, com ou sem razão, que sua amiga é a mais bela e a mais gentil.

- Bem o sei - respondeu o rei. - Mas nada do que disse mudarei. Palavra de rei não deve ser contestada. Amanhã cedo partiremos todos caçar o Cervo Branco na floresta aventurosa. Essa caça será mui maravilhosa.

No dia seguinte, logo ao alvorecer, o rei levanta. Veste uma cota curta para ir à floresta. Manda acordarem os cavaleiros, aprestarem os cavalos de caça. Tomam das armas e das flechas. Afastam-se rumo à floresta.

Atrás da tropa de cavaleiros vinha a rainha, em companhia de uma dama de honra que montava um palafrém branco. Seguia-as um cavaleiro chamado Eric. Era da Távola Redonda, e tinha grande renome na corte. (...)

- Senhora - diz ele -, se vos apraz cavalgarei ao vosso lado neste caminho. Vim apenas para estar junto de vós.

A rainha agradeceu:

- Caro amigo, sabei que aprecio muito vossa companhia. Melhor não posso ter.

Então eles cavalgam a bom passo e na floresta entram direto. Os que estavam na frente já haviam levantado o cervo. (...) Correndo à frente de todos eles, o rei presidia a caça, montado em um cavalo espanhol.

No bosque, a rainha Guinevere escutava os cachorros, tendo ao lado sua aia e o cavaleiro Eric. Os que haviam levantado o cervo logo ficaram tão afastados que nada mais se ouvia, nem trompa nem cão nem relincho.

(...) Viram então aproximar-se um cavaleiro armado, escudo ao peito, lança em punho. À sua direita cavalgava uma jovem de belo aspecto e diante deles, em um grande rocim, vinha um anão trazendo na mão um chicote com nós. A rainha, que os avistara de longe, estava curiosa de saber quem eram o cavaleiro e a jovem. Pede à aia:

- Damizela, ide dizer àquele cavaleiro que venha até mim e traga a jovem.

A aia vai diretamente até eles, mas o anão grita-lhe:

- Damizela, o que procurais aqui? Não tendes por que ir adiante!

- Anão - diz ela -,deixai-me passar! Quero falar a esse cavaleiro! É a rainha que me envia.

Mas o anão se atravessa no caminho. E grita novamente:

- Para trás! Para trás! Não tendes o que fazer aqui! Não tendes o que dizer a tão grande cavaleiro!

A aia sente grande desprezo por um ser tão pequeno que ousa lhe falar assim. Avança, tencionando passar à força. Mas o anão ergue o chicote para lhe bater no rosto. Ela se protege com o braço. O anão lhe açoita a mão nua; açoita também a outra mão, que fica toda vermelha. Quando a aia vê que não há recurso, recua e vai embora. Com o rosto banhado em lágrimas, volta para a rainha. Esta diz então:

- Eric, caro amigo, estou agastada por esse anão ter ferido a minha aia. O cavaleiro é um mal homem permitindo que tal canalha batesse em tão bela criatura. Eric, ide até o cavaleiro e dizei-lhe que venha prontamente. Quero conhecê-lo, e também à sua amiga.

Eric pica de esporas e galopa em linha reta. Ao vê-lo chegar, o anão corre à sua frente.

- Para trás, vassalo! Que vindes fazer aqui? Afastai-vos, eu ordeno!

Mas Eric responde:

- Antes foge tu, anão horroroso! Deixai-me passar!

(...)

Eric empurra o anão que, furioso, chicoteia-o tão forte que as correias marcam-lhe o pescoço e o rosto. Eric bem sabe que nada ganharia em matar o anão, pois vê adiante o cavaleiro em armas, cheio de maldade e arrogância, que o ameaça:

- Se bateres em meu anão, te mato!

Loucura não é coragem, e Eric afasta-se, agindo com muita sensatez.
- Senhora - diz à rainha -, eis que sofri ultraje inda maior! Aquele anão horrível golpeou-me tão forte que me tirou a pele do rosto. Não o ousei tocar nem ferir. Ninguém deve censurar-me, pois estava sem armas. Aliás, o cavaleiro senhor do anão não teria permitido e seguramente me mataria. Mas quero jurar-vos que, tão logo possa, vingarei minha desonra ou a tornarei ainda maior. No momento as minhas armas estão longe demais. Não contava precisar delas e deixei-as em Cardigan quando partimos esta manhã. Se ora as fosse buscar, jamais conseguiria alcançar aquele cavaleiro, pois ele se afasta a bom galope. Mas vale que o siga de perto ou de longe, até que me emprestem ou aluguem armas que me convenham. Então o cavaleiro me encontrará aparelhado para o combate. Senhora, sabei que, sem falta, nos bateremos tão duramente que um de nós terá de ser vencedor. Espero estar de volta dentro de três dias, o mais tardar. Então me revereis no castelo, não sei se contente ou dolente. Não posso tardar mais. Preciso seguir o cavaleiro. Vou-me, e a Deus vos recomendo.

A rainha autoriza-o a partir e recomenda da mesma forma, creio que mais de quinhentas vezes, para que do mal Deus o proteja.

Sir Wally de Moema resume a história neste ponto, contando que todos menos Eric voltam para Cardigan. Com o cervo abatido, a discussão se inflama e todos discutem (a toa) quem é a mais bela. A rainha lembra a todos que Eric não voltou da caçada, e foi trás o cavaleiro para recuperar sua honra perdida. Por este motivo, o beijo do costume fica adiado por três dias ou até a volta de Eric, o que acontecer primeiro. Continua agora o texto de Chrétien de Troyes.

Durante esse tempo, Eric ia seguindo em todos os caminhos o cavaleiro armado e o anão que o havia chicoteado. Chegaram diante de um burgo muito bem sitiado, sólido e belo. Entraram diretamente pela porta.
(...) Assim que avistam muito ao longe o cavaleiro que conheciam - mais o anão e a donzela - toda a gente vai ao seu encontro. Saúdam-nos e felicitam-nos, mas não fazem o menor caso de Eric, que não conhecem, ao que parece. Este segue passo a passo o cavaleiro pelo burgo, até que o vê albergar e fica mui satisfeito com isso.
Prosseguindo um pouco no caminho, vê sentado em um degrau um vavassalo de certa idade, dono de bem pobre morada. (...) Eric considerou que esse bom homem o poderia sem dúvida albergar. Passou a porta, entrou na casa. O vavassalo correu atrás dele; e antes que Eric dissesse uma palavra, saudou-o:

- Gentil sire - disse ele -, sede bem-vindo se em minha casa vos dignais albergar! Eis a casa que vos espera.
- Agradeço-vos - respondeu Eric. Necessito de uma casa por esta noite.

Eric desce do cavalo. O próprio sire o toma e puxa pelas rédeas. Ele faz as honras a seu hóspede. Chama a mulher e a filha., que trabalhavam em uma sala de costura, não sei em qual trabalho de agulha.
A dama saiu, acompanhada da filha que vestia uma fina camisa de abas, branca e plissada, por cima do camisão branco. Não usava outra roupa, mas o camisão estava tão puído que tinha furos nos lados. Pobre era a roupa por fora, mas belo era o corpo por baixo.
Ela saíra da sala de costura. Ao ver o cavaleiro, manteve-se um pouco atrás, e porque o via pela primeira vez teve pejo e enrubesceu. Eric, por seu lado, abismou-se ao ver tão perfeita beleza.
O vavassalo disse à filha:
- Bela e meiga filha, tomai este cavalo e levai-o ao estábulo com os meus.
(...) Depois volta ao pai, que lhe diz:
- Minha filha querida, tomai pela mão este senhor e fazei-lhe grande honra.
A filha obedece de bom grado. Toma o senhor pela mão e o conduz para lhe fazer as honras. A dama fora na frente para bem adornar a casa.
(...) Depois que cearam a gosto e deixaram a mesa, Eric fez uma pergunta ao seu anfitrião o dono da casa:
- Dizei-me, gentil anfitrião, por que vossa filha traja roupa tão pobre e vilã, ela que é tão perfeitamente bela?
- Gentil amigo - disse o vavassalo -, pobreza faz mal a muitos e estou entre eles! Dói-me ver a minha filha tão pobremente trajada. Não o posso remediar. Tanto estive sempre em guerra que perdi toda a minha terra. Tive de a vender ou empenhar. Entretanto, a minha filha estaria bem vestida se eu tivesse sofrido que ela aceitasse o que lhe queriam dar. O senhor desta terra a teria belamente adornado e cumulado de todos os bens possíveis, pois o dito senhor é conde. Não há nesta região barão dos mais ricos e mais poderosos que a não tivesse de bom grado tomado por esposa, com meu consentimento. Mas espero inda melhor partido. Deus lhe reserva maior honra que lhe traz a aventura: rei ou conde aqui virá que a seu país a levará. Haverá sob o ceú um só deles que se envergonhe da minha filha, que não tem igual no mundo? Ela é muito bela, mas seu recato sobrepuja ainda a beleza. Deus não fez criatura com mais senso nem de coração mais franco. Quando a tenho junto a mim, o mundo não vale um caracol! Ela é meu prazer, meu lazer, meu solaz e meu conforto e minha fortuna e meu tesouro. Nada conheço que seja tão belo como seu corpo.
Após ouvir seu anfitrião, Eric perguntou-lhe de onde era toda aquela cavalaria que tão numerosa viera ao burgo que não havia rua tão pequena nem casa tão pobre que não estivessem cheias de cavaleiros e damas e escudeiros.
- Gentil amigo, são os barões desta terra e das redondezas que vieram, jovens e velhos, para a festa que acontecerá amanhã. Haverá grande algazarra quando estiverem todos reunidos e quando, diante dessa multidão, um belo gavião de cinco mudas, talvez seis, o melhor que conseguirem, for colocado lá em cima, sobre uma vara de prata. Quem o quiser possuir deverá ter amiga bela e recatada e irreprochável. Se houver um cavaleiro bastante audaz que pretenda para sua amiga o renome e o prêmio reservados à mais bela, diante de todos ele a fará pegar o gavião na vara, caso nenhum outro se oponha. Permaneceu aqui esse antigo costume, e é por isso que vêm tantas pessoas.
Após essa fala, Eric assim pede ao vavassalo:
- Gentil anfitrião, se não vos aborrece e se o sabeis, dizei-me: quem é esse cavaleiro com armas azul e ouro que ora passou por aqui? Junto dele cavalgava uma donzela encantadora e adiante um anão corcunda.
Responde o anfitrião:
- É quem terá o gavião, pois nenhum cavaleiro ousará opor-se. Não, não haverá rotos nem rasgados. Ele o conseguiu dois anos seguidos, sem ter encontrado desafiante. Se desta vez obtiver o pássaro, o terá ganho para sempre. Dele será o pássaro, doravante todo ano, sem contenda nem peleja.
Diz Eric vivamente:
- Esse cavaleiro, não gosto dele! Sabei que se eu tivesse armas lhe disputaria o gavião! Gentil anfitrião, rogo que me ajudeis a aparelhar-me de armas, velhas ou novas, feias ou belas, pouco importa.
O anfitrião responde:
- Tenho boas e belas armas que de bom grado vos emprestarei. Lá dentro está a loriga de malha tripla que foi escolhida entre quinhentas, e as perneiras brilhantes e leves. O elmo está polido, luzente, e o escudo tinindo de tão novo. Cavalo, espada e lança vos emprestarei também, podeis ter certeza!
- Agradeço-vos, caro anfitrião, mas não desejo melhor espada além da que trouxe, nem outro cavalo além do meu. Dele me valerei bem. Se emprestardes o restante, será bondade mui grande. Mas quero pedir ainda uma cousa, pela qual vos serei reconhecido, se Deus me der de retornar com a honra da batalha.
- Pedi com toda segurança o que vos apraz. Nada do que tenho vos faltará.
Então Eric diz que quer reclamar o gavião para a filha do seu anfitrião, pois realmente não haverá na assembléia jovem bela com um centésimo da sua beleza. Se a levar consigo terá razão certa e segura de pretender e mostrar que com o gavião deve ficar. E acrescenta:
- Senhor, não sabeis qual hóspede haveis albergado, sua condição ou classe. Sou filho de um rei rico e poderoso. Meu pai é o rei Lac, Os bretões me chamam Eric. Pertenço à corte do rei Artur. Mais de três anos permaneci junto dele. Não sei se até esta terra chegou o renome do meu pai ou o meu. Mas prometo que, se me quiserdes aprestar com vossas armas e confiar vossa filha, amanhã conquisto o gavião! Então, se Deus me der a vitória, levarei vossa filha para meu país. Farei com que ela porte coroa. Será rainha de dez cidades.
- Ah, caro sire, é mesmo verdade? Sois Eric, o filho de Lac?
- Sou sim.
O vavassalo sente grande júbilo:
- Ouvimos falar de vós nesta região. Muito vos amo. Sois bravo e audaz. Jamais vos desacolherei. Apresento minha querida filha, inteira a vossas ordens.
Pegou a filha pelo pulso.
-Tomai - diz ele -, ela é vossa!

Curiosos? Amanhã tem mais...

3 comentários:

Anônimo disse...

legal. beijos, pedrita

Marion disse...

Querido Sir Wally de Moema, estou curiosa para ler o desfecho da história...

Beijos

Anônimo disse...

"Sir Wally de Moema", hehehehe gostei dessa =) Sir Gabriel de Sorocaba... humm...
Quero ver o fim do conto =) Bons tempos em que se recebia estranhos em casa tão facilmente, rs. A menina devia ser mesmo encantadora...
Bjos!