Na semana passada mostrei alguns kits de bloquinhos de montar inspirados na lenda arturiana; mas um detalhe deveria ter chamado a atenção dos leitores. Um dos kits que mostrei tem por nome "Lamorak e a besta assassina". Afinal, vocês sabem quem é Lamorak?
O Ilustre Desconhecido
Dependendo para quem vocês perguntarem, Lamorak é um completo desconhecido, ou um personagem fundamental na lenda arturiana, mesmo que desenvolva um papel de coadjuvante. Esta diferença gritante de opinião condiz com a fonte consultada; Sir Lamorak de Galis surgiu como um personagem capaz de dar nexo a histórias que a princípio não teriam relação nenhuma.
Vejam só:
A um tempo já escrevi sobre o cavaleiro da charrete, história que viu nascer o Lancelot cavaleiresco e com ele o romance com Guinevere. Esta história foi contada por Chrétien de Troyes, onde Lancelot e Gawain partem para resgatar Guinevere, refém de Meliagrance. Gawain fracassa ao tentar atravessar a Ponte Sob-a-Água, enquanto Lancelot faz a proeza de atravessar a Ponte da Espada e consegue resgatar Guinevere.
Também escrevi sobre um conto muito mais antigo, o de Tristão e Isolda. Com o tempo o conto foi se transformando, até chegar no ponto no qual nosso herói Tristão teve "upgrade" para cavaleiro da távola redonda. Quer dizer, o conto foi incorporado ao lendário dos contos arturianos.
Estes dois contos, totalmente desconexos, acabaram se entrelaçando no texto do Thomas Malory. Sir Lamorak é mencionado pela primeira vez no texto inglês, e com isso um novo sentido foi dado à historia toda. Este novo cavaleiro serve como elemento de liga entre inúmeras histórias; ele pode perfeitamente ser removido sem afetar o desfecho das trilhas principais, mas acaba dando um sentido adicional, um contexto mais rico.
Agora posso me explicar melhor sobre o ilustre desconhecido: para a molecada inglesa, o Thomas Malory é o equivalente a um Shakespeare arturiano; é parte fundamental da história literária do idioma inglês, e com certeza material de estudo para azucrinar crianças levadas. Acho que o melhor equivalente na língua portuguesa seja Camões, cujo valor literário é inestimável. É a riqueza de preservar um texto antigo na sua essência. Por outro lado, quem nunca leu Malory ou o fez superficialmente, conhece provavelmente o roteiro base da lenda arturiana: Arthur puxa a espada, vira rei, casa com Guinevere, tem o rala-e-rola com Lancelot, surge Mordred, todo mundo morre.
É mais ou menos como ver os filmes do Harry Potter sem ler os livros; se pega a idéia principal do livro, mas somem todas as histórias paralelas que engordam o texto e enriquecem a leitura.
Afinal, quem é Lamorak?
Filho do Rei Pellinore, ele é o terceiro cavaleiro mais importante da vertente cavaleiresca ou romântica do texto do Malory, apenas atrás de Tristão e Lancelot, como segundo e primeiro respectivamente (embora eu acho que Gawain era para estar em segundo lugar, e que o Tristão está de penetra na lista).
Entre muitas aventuras, enfrentou 30 cavaleiros sozinho, até chegar Tristão para ajudá-lo; Lamorak e Tristão se enfrentaram várias vezes, até chegarem a um acordo de cavaleiros e cada um tomar seu rumo.
A história mais importante e cabeluda envolvendo Sir Lamorak é seu romance com a rainha de Ockney, Morgause, viúva do Rei Lot.
O detalhe bizarro da história é que o Rei Lot foi morto pelo Rei Pellinore, pai do Lamorak... Os filhos de Lot e Morgause acabaram sabendo do rolo de Lamorak e sua mãe. Assim, Gawain mandou Gaheris ficar de tocaia para pegá-los no flagra. Encontrou os dois nús na cama, e os atacou. Morgause morreu de forma nada romântica (sem spoilers desta vez...), mas a sorte de Lamorak não seria decidida nesse quarto. Para Gaheris, seria uma desonra matar um cavaleiro desarmado, e por isso o deixou ir.
A rixa entre os filhos do Rei Lot e Lamorak continuou por um longo tempo, com várias tentativas de assassinar Lamorak. Após tantas tentativas, era inevitável que isso acontecesse, fato que terminou de sujar a honra dos filhos de Lot. Só como detalhe, não esqueçam que Mordred era irmão de criação de Gawain, Gaheris, Agravain... E todos lembram como acabou o encontro entre Arthur e Mordred. Os problemas entre Arthur e os filhos de Lot são uma constante nos contos de Malory.
O Nexo
O que no fim não contei ainda é o papel de junção feito por Lamorak. No conto do seqüestro de Guinevere por Meliagrance, Lamorak encontra com Lancelot na bosque, e com muitos outros cavaleiros de diferentes histórias. Por um lado, Lamorak escuta Meliagrance dentro de uma capela, pedindo que Guinevere perceba seu amor e se apaixone por ele; Lamorak encontra mais tarde o Meliagrance no bosque, e diz que eles deviam justar, porque não concordava que Guinevere fosse a mais bela. Para ele, esse lugar era de Morgause. E assim os dois brigaram até aparecer Tristão, que os separou.
Em outras partes do conto, Tristão e Lamorak se encontram, brigam, se amigam, se encontram novamente, arranjam uma coisa qualquer para brigar, se separam de novo, e por aí vai. Quando Lamorak morre por obra de Gawain e seus irmãos, Tristão estava amiguinho do Lamorak, e lamentou muito sua morte. Ele se encontrou com os filhos de Lot em um torneio, e depois de um bate-boca o Tristão caiu fora, mas Agravain e Gaheris não se conformaram e foram atrás dele. Tristão acabou vencendo os dois, e seguiu seu caminho.
Assim, Lamorak é escalado no livro muitas vezes para servir de apoio ao roteiro, vencendo muitas justas, se metendo em muitas encrencas, e dando um sabor diferente à versão então conhecida de Troyes. Portanto, Lamorak é uma figura bem conhecida nos países da Grã-Bretanha, mas um bom desconhecido fora dela. Legal, né?
Até a semana que vem!
2 comentários:
Eu não conhecia esse personage. Engraçado como ele participa de tantos momentos da história e ao mesmo tempo não faz a menor falta nela né?
Ah, procurei o brinquedo na hihappy mas aqui não tinha esses modelos do artur :)
Beijos!
Então, acho que a essência do Lamorak é o fato de estar inserido no meio de tantas histórias, tantos personagens, e ao mesmo tempo não ter vingado no quesito popularidade. Acho que ele se encaixa bem no meio de outros personagens "coringa" chamados para participar do texto na medida que o autor precisa deles para complementar. Outros exemplos poderiam ser o Rei Pelinore, pai do próprio Lamorak, ou mesmo o Rei Palomides, as vezes mostrado como o malucão atrás da sua besta assassina. Estou até pensando em falar na besta épica do Palomides no próximo post, quem sabe...
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