Éric et Énide: Parte 3

Este post é continuação da parte um e parte dois; se não leu esses posts ainda, recomendo muito ler na ordem.

A tradução do Chrétien que tenho em mãos começa em este ponto em itálico, resumindo alguns acontecimentos como se fosse uma pausa entre dois atos de uma obra. Respeitando o texto, prossigo da mesma forma no ponto em que paramos na parte dois.

Acontecem então os preparativos de combate. Equipado com as armas pelas mãos da jovem, Eric a coloca imediatamente na garupa e dirige-se para a praça livre e ampla onde vê chegar o cavaleiro e a sua equipagem. Este convida a donzela a apoderar-se do pássaro que lá está sobre a percha. Voltando-se para sua amiga, Eric faz o mesmo. É o desafio, e em seguida acontece o primeiro grande combate singular dos romances da Távola Redonda. Seqüência de episódios selvagens. Vencido, o cavaleiro do anão corcunda implora graça. Recebe a imposição de ir ao castelo de Cardigan, colocar-se à mercê da rainha Guinevere e anunciar a próxima chegada do vencedor e sua companhia. Estes logo se põem a caminho.

Juntos, tanto cavalgam que ao meio-dia em ponto ante o castelo chegaram. Eram esperados em Cardigan. Para os ver de longe, os melhores barões tinham subido às janelas. Com a rainha Guinevere e o próprio rei estavam Kai e Parsifal, sire Gawain e Tor filho do rei Ares, Lucan o copeiro-mor e mais outros cavaleiros. Quando longe viram Eric, todos o reconheceram bem. Com a sua chegada a rainha e toda a corte sentem a mesma grande alegria, pois todos o amam igual.

Tão logo Eric chega diante do palácio, o rei desce a seu encontro e também a rainha. Todos lhe dizem "que Deus vos guarde!" e prezam e louvam a grande beleza de sua donzela. O próprio rei a segura para descer do palafrém. Faz-lhe a maior honra, levando-a pela mão até a grande sala de pedra do palácio. Atrás deles Eric e a rainha sobem da mesma forma, de mãos dadas. Diz ele:

- Senhora, trago-vos minha donzela e jovem amiga, de pobre vestimenta vestida. Assim ela me foi dada. Assim a trouxe até vós. É filha de um pobre vavassalo. Pobreza rebaixa muito homem bom. Seu pai é nobre e cortês, mas de bens quase nada tem. A mãe é senhora mui digna, pois possui como irmão um rico conde. Beleza e origem não serão motivos para que eu recuse esposar esta damizela. Pobreza tanto lhe puiu o camisão branco que nos cotovelos as duas mangas estão rotas. Contudo, se eu a quisesse fazer portar boas vestes, sua prima ofereceu-lhe roupa de arminho, seda, veiro ou petigris. Porém não consenti que outra ela vestisse enquanto assim não a vísseis. Minha gentil senhora, sabeis o que é preciso: suplico que penseis em vestir-lhe belas vestes.

Responde a rainha:

- Agistes bem. É justo que ela tenha das minhas roupas. Vou lhe dar uma das mais belas.

A rainha conduz a donzela ao seu quarto e ordena que lhe tragam uma túnica nova e o manto da outra roupa traspassada, feita na medida exata do seu corpo. A serva traz prontamente o manto e a túnica, que até nas mangas era forrada de branco arminho. No punho e no decote haviam utilizado (não é adivinhação) mais de meio marco de ouro batido e pedras de grande valor: azuis, verdes, violeta e sépia. A túnica era de grande riqueza. Não menos valia o manto de tecido fino, tendo ao pescoço duas zibelinas com presilhas que pesavam cada qual pelo menos uma onça. De um lado cintilava um jacinto e do outro um rubi mais luzente que uma candeia.

Em seguida, duas criadas levam a donzela a uma câmara privada. Desvestem-na do camisão. Ela coloca a túnica, envolve-se em sua vestimenta, cinge uma faixa com passamanes de ouro e recomenda que doem seu camisão, pelo amor de Deus. Depois veste o manto. A cor das peles parece ficar mais escura. A roupa assenta tão bem que a torna inda mais bela.

Com um fio de ouro, as duas aias ornam o cabelo louro; mas ele brilha mais do que o fio que o prende. Na cabeça colocam um aro de ouro lavrado de flores de diversas cores. Do melhor possível a adornam, com tanto cuidado que nada há para retocar. Ao pescoço passam-lhe duas fivelas de outro nigelado com engaste de topázio. Igual à bela e graciosa jovem creio que em terra nenhuma houvera, tanto a natureza bela obra fizera.

Ela saiu do aposento e veio ter com a rainha, que a elogia, pois ama a damizela e apraz-lhe que esteja bem ornada e bela. De mãos dadas vêm ambas diante do rei, que se ergue ao vê-las. Quando as duas entraram, tantos cavaleiros se puseram de pé no salão que eu não saberia nomear a décima parte, nem a vigésima, nem a trigésima. Mas vos poderei dizer os nomes dos melhores barões da corte, os da Távola Redonda, que são os mais valorosos do mundo.

(...) Quando a bela jovem forasteira vê todos esses cavaleiros que a olham com insistência, baixa a cabeça. Sente pejo (não é de estranhar), e sua face purpureja. Mas o pejo que a assalta inda mais bela a torna.

O rei a vê assim envergonhada e não quer se afastar. Toma-lhe suavemente a mão e a faz sentar à sua direita. À esquerda assenta a rainha, que diz ao rei:

- Sire, pelo que veio e creio, aquele que com as armas conquistou tão bela mulher em terra estranha deve ser bem-vindo à corte do rei. Agimos bem ao esperar por Eric. Agora podeis tomar o beijo à mais bela da corte. Creio que ninguém vos impedirá, pois ninguém ousará dizer: "Esta que aqui está não é a mais bonita das jovens, neste lugar e no mundo todo".

Responde o rei:

- Não é mentira. A esta jovem, se ninguém me contestar, darei as honras do Cervo Branco.

Depois, dirigindo-se aos cavaleiros:

- Senhores, que tendes a dizer? Afirmo que ela tem o direito às honras. Podeis dizer algo contra isso? Se alguém quiser opor resistência, fale agora o que pensa. Sou rei. Não devo mentir nem consentir em vilania, falsidade ou desmedida. (...). O costume de Pendragon meu pai, que era rei e imperador, devo guardar e manter, não importa o que me possa ocorrer. Ora, dizei-me de pronto e mui livremente todo o vosso pensar: esta jovem, embora não sendo da minha casa, não deve por bem e justiça receber o beijo do Cervo Branco?

Todos exclamam a uma só voz:

- Sire, por Deus e por sua cruz, podeis julgar com justeza que esta aqui é a mais bela; que possui mais beleza e brilho que o sol! Livremente podeis dar-lhe o beijo. Estamos todos acordes!

Então o rei volta-se para a jovem e a abraça, dizendo:

- Doce amiga, dou-vos minha amizade sem má intenção, vilania ou maldade. De todo coração vos amarei.

Assim, seguindo o costume, o rei Artur restaurou o privilégio que o Cervo Branco tinha em sua corte.

Chrétien passa então a relatar como Eric pede ao rei Artur o favor de ter suas núpcias celebradas na corte. Prontamente o rei chama os vassalos mais ilustres: Bilis, rei dos antípodas, senhor dos anões; Maheolas, senhor da ilha de Vidro; Guíngomar, senhor da ilha de Avalon e amigo de Morgana; Aguiflez, rei da Escócia; Garraz, rei de Cork, e David de Tintagel, e o senhor da ilha negra...

Ao receber sua mulher em casamento, Eric teve de a chamar pelo verdadeiro nome. (Nenhuma mulher será legitimamente esposada se não for chamada pelo nome certo.) Ninguém ainda o conhecia. Nesse momento, ficaram sabendo: Enide era seu nome de batismo. O arcebispo de Canterbury, que viera à corte, abençoa-a segundo o costume.
Quando toda a corte estava reunida, a ela vieram todos os menestréis da região hábeis em algum divertimento. Grande alegria reinava no salão. (...) Nada que possa rejubilar e alegrar é omitido nesse dia de núpcias. Soam tímbalos, tambores, cornamusas, pífaros, flautins e trompas e charamelas. Não há porta nem portinhola fechada.
O rei Artur não foi mesquinho: ordenou a seus padeiros, valetes e copeiros que dessem com grande plenitude, a cada qual segundo sua vontade, pão, vinho e carne de caça. Grande foi o regozijo no palácio; mas de muitos detalhes vos poupo, para narrar o júbilo e o prazer que houve no quarto e no leito. Para essa primeira noite juntos, Enide não foi raptada nem Brangiene posta no seu lugar. A rainha interpôs-se para a adornar e deitar, pois os esposos ardiam por estar juntos.

Cervo acossado que de sede ofega não deseja tanto a fonte, nem gavião faminto retorna ao reclamo de tão bom grado quanto os amantes desejam se conhecer nus. Naquela noite ambos resgataram o tempo de tão longa espera! Quando todos deixaram o quarto, eles concedem aos corpos seus direitos. Os olhos saciam-se de olhar, esses olhos que descortinam a via do amor, enviando ao coração a sua mensagem. E agrada-lhes tudo que contemplam. Após a mensagem dos olhos vêm a doçura - que vale bem mais - dos beijos que atraem o amor. Dessa doçura ambos experimentam e dessedentam os corações, tanto que com grande custo a interrrompem. O beijo é seu primeiro jogo; mas o amor que os prende torna a donzela mais ousada. Logo ela mais nada teme. Tudo sofreu, por mais que lhe custasse. E antes de levantar do leito perdeu o nome de donzela. De manhã, havia dama nova.

Que liiiiiiiiindooo!!!! Quero mais!!!!!

A história do Cervo Branco termina por aqui, mas Eric e Enide tem um longo caminho pela frente. Quem sabe, daqui a alguns posts não conte o resto da história deles?
Acho muito poética a última seqüência de parágrafos que copiei do livro. Nela podemos adivinhar, sentir o fundo do texto original do Chrétien de Troyes, que era em francês, e em formato de verso. Na tradução perdemos muito disso, mas o texto foi redigido com tanto talento que mesmo após tantas transformações consegue emocionar e transmitir a força da mensagem. O amor é um gesto universal e atemporal, que revigora sua mensagem cada vez que duas pessoas se dizem "te amo". O sentimento entre Eric e Enide era esse: um vínculo de amor, que explodia na paixão desenfreada que os versos contam.

Desejo a todos meus leitores um ótimo Natal, uma deliciosa véspera rodeado de amigos, família e por que não, muitos presentes!

Até a semana que vêm!

4 comentários:

Anônimo disse...

Que bonito o final feliz =) Conta mais da história deles sim! Eu nem sabia sobre esses personagens, agora quero saber até onde vai =)
Feliz Natal!!! E náo estranhe o horário, estamos esperando a familia chegar pra ceia, heheh...

Pedrita disse...

um ótimo Natal pra vcs. beijos, pedrita

Enide Santos disse...

Obrigada por esta emocionante leitura!

Wally disse...

Olha só, meus posts fazendo sucesso ainda :-)
Mérito do Chretien de Troyes, ele era o cara mesmo!