Cabeça de Muié

Estou na página 276 do "Las Nieblas de Avalón" (Brumas de Avalon) comprado em Buenos Aires, e não estou nem perto de terminar o livro, só para constar.
A última página deste livro é a 624, e é o livro mais densamente impresso que vi na minha vida. A impressão não deixou lugar sequer para segurar o livro aberto, o texto vai da cola no meio até a borda do papel, e a mesma coisa por cima e por baixo; apenas uma linha de texto abaixo isolada para mencionar o número da página. O exagero é tal que o livro termina exatamente na última linha possível da última página, e não tem papel sobrando, já vem a capa de papelão. O livro é trabalhoso de ler, a tipografia não é grande e tem pouco espaçamento, mas mesmo com todas estas dificuldades estou fazendo meu caminho (devagarrrr) até o fim. Não que não conheça a história, mas quero ter o prazer de lê-la, e tirar minhas próprias conclusões.

Ia comentar o livro somente quando terminá-lo, mas ao passo que vai é provável que esqueça sutilezas interessantes até chegar no fim e escrever de fato.

Vou lançar de tempos em tempos alguns comentários sobre o livro, pode ser em formato de post exclusivo ou mesmo como comentário curto dentro de outros posts; vai de lua, que aliás é um símbolo importante e recorrente no conto das Brumas.

Quem assistiu o filme de Brumas começa com vantagem. A produção de TV, mesmo longa de assistir, é infinitamente menor que o livro em termos de detalhes, e vai ao que interessa; não que o resto não seja interessante, mas tem segmentos do livro que parecem ser lero-lero literário. O lero-lero literário é a arte de esticar o andamento do conto, ao melhor estilo dos autores de novela televisiva, porque qualquer novela de 9 meses poderia durar menos de um mês, se for aos fatos mesmo. Como ia dizendo, a vantagem de ver o filme antes é ter uma linha de tempo mental clara sobre os acontecimentos, e perceber mentalmente em qual ponto da história nos encontramos; sem essa ajuda, é bem provável que os fatos fiquem um pouco confusos.

Muito bem, vamos ao livro mais decididamente feminista que li na minha vida (e essa fala não é minha... tá bom, é sim). Marion Zimmer Bradley era uma defensora dos direitos das mulheres, e freqüentemente beirava o lado radical do feminismo; e o livro transparece isso nítidamente. Os homens do livro são apenas parte do cenário, e somente aparecem quando é interessante para a trama e para as mulheres na história que eles se encontrem por perto. Pode ser impressão minha, mas afinal, o blog é meu, se não escrevo minhas impressões, vou escrever quais?

Sobre Veados e Chá de Cogumelos

Muito bem, vamos a uma das seqüências mais clássicas. Morgana, filha de Igraine e Gorlois (a mãe primeiro...), estava morando em Avalon sob os cuidados da sua tia, Vivian. Vivian é sacerdotisa de Avalon, à la Mãe Superiora, dona da sabedoria, voz da Deusa e etc. Morgana tem por missão substituir sua tia quando ela se retirar, portanto tem um peso enorme em cima dela para ser sempre a melhor, a mais digna, uma verdadeira filha da Deusa. Ela obedece cegamente, segue todos os rituais, se consagrou a Deusa em corpo e mente.
Existe um ritual antigo druida, onde um jovem caça um cervo lutando apenas com suas mãos e uma adaga; este confronto é mortal, e um deles sempre sai morto, seja o cervo ou a outra besta que foi atrás, leia-se o Gamo-mor. Uma vez que o jovem consegue a vitória, ele ganha um chá de cogumelo do capeta, deixam ele pelado, colocam pinturas no rosto, jogam o couro ensangüentado do cervo que caçou por cima dele, colocam uma máscara com chifres de veado, e o levam para uma caverna. Básicamente como em todas as despedidas de solteiro.
Nesta caverna, aguarda uma jovem, que também ganhou o chá de cogumelo, e que simplesmente se entrega ao moço. Desta noite de "loucura" costuma nascer um filho, que vem a ser o filho da Deusa, consagrado através dos rituais de Beltane.
Acontece por acaso (acaso nada! tudo tramóia da Vivian!!) que a jovem é Morgana, e o moço... Arthur, seu jovem meio-irmão. E o que não era para descobrirem, descobrem logo depois de transar. Sim, Arthur sacou, mesmo confundido ainda pelo chá, que acabou de "ritualizar" a sua própria irmã.
Esta armação toda foi obra da Vivian, com um simples motivo: Morgana era decididamente filha do povo das fadas, filha de Igraine, carregando sangue digno e vindo de Avalon. Era a sacerdotisa perfeita, o corpo da Deusa (figurado, tá?) na terra. Arthur, nascido de outra tramóia (do Merlin esta vez), carregava sangue legítimo tanto de Avalon pela sua mãe Igraine, como do Uther, que respeitava os ritos e fora em outros tempos e outras vidas um sacerdote das antigas, dos que conheciam os mistérios e falavam lado a lado com os Deuses não só das Pedras (Stonehenge) como também o Atlantes.

Fumei.
Quer dizer, Marion ZB fumou.
Ou tomou o mesmo chá. Antidoping nela!

Mulheres Ciumentas

Um episódio clássico femenino é o do encontro de Lancelot e Morgana em Avalon, bem prévio ao momento acima. Ocorre que Lancelot é filho de Vivian (Lancelot do Lac, Lancelot do Lago, Vivian, sehora do Lago, senhora de Avalon... tá legal?), portanto isso o faz primo de Morgana, e de tempos em tempos o jovem e galante Lancelot voltava para visitar sua mãe. Ele não tinha a manha de entrar em Avalon sozinho, precisava sempre de uma sacerdotisa capaz de separar as brumas para entrar na ilha. Digamos, tinha um serviço de barquinhos com sacerdotisa de plantão, tipo táxi, que levavam as pessoas para dentro ou fora da ilha. Traduzindo, para que alguém pudesse chegar até a ilha sempre precisava que uma sacerdotisa tivesse a boa vontade de sair e trazê-lo junto para dentro. Em outras palavras, se uma muié não levava o cara para dentro da ilha, ninguém entrava, nem mesmo os barqueiros que faziam a viagem toda hora.
Bom, isso facilita mais ainda o roteiro, já que somente vai ter um macho-alfa zanzando pela ilha quando for "conveniente" para o roteiro, mesmo que o tal seja as vezes inconveniente com as sacerdotisas.
Como dois primos bobos, Morgana e Lancelot foram passear no morro em Avalon, onde ficavam as pedras cerimoniais, um círculo de pedras usados durante os rituais de adivinhação. Desde este ponto era possível enxergar os limites da ilha e a bruma que circundava e protegia a ilha, mantendo o lugar sagrado. Morgana levou uns lanchinhos para o piquenique, e Lancelot se recostou na grama, cansado por cavalgar a noite inteira vai saber de onde até chegar na ilha. E rola um climinha.

Ele comentou, falando baixo:
- Aqui, nesta ilha mágica, resulta fácil sentir a cócega do poder do ar e da terra -afastou o olhar e espreguiçou num bocejo-. Escalar até aqui deve ter me cansado, junto com a cavalgada desta noite. Quero deitar na grama e aproveitar este sol, e comer um pouco do pão que você trouxe.
Morgana o levou até o centro exato do círculo de pedras, pensando que, se ele tivesse qualquer sensibilidade, perceberia o grande poder que tinha naquele lugar.
- Deita na grama, ela irá te recarregar -disse enquanto lhe dava um pão com manteiga e mel. Comeram devagar. Ele pegou na mão dela, brincalhão, para lamber o mel que tinha ficado nos dedos dela.
- Como você é doce, prima - e riu.
Ela sentiu que todo seu corpo ganhou vida nesse toque. Segurou a mão dele para devolver o gesto, mas subitamente a soltou como se estivesse queimando; o que para ele era apenas um jogo, para ela nunca ia ser. Virou as costas, escondendo na grama a face vermelha. A energia do lugar corria pelo seu corpo inteiro, ficando com tanta energia como a própria Deusa.

(...)foram para outro canto, lará lará...(...)

Lancelot perguntou, falando baixo:
- Já participou do fogos de Beltane? Já serviu à Deusa?
- Não - respondeu Morgana, com a voz apagando. - Serei virgem enquanto a Deusa o quiser assim; e bem provável que me reserve para o Grande Matrimônio.
Inclinou a cabeça, para que o cabelo cobrisse seu rosto. Na presença dele era tímida, como si ele fosse capaz de ler seus pensamentos, e adivinhar o desejo que a invadia. Estaria disposta a abandonar sua virgindade se ele o pedisse? Até então, a proibição nunca tinha sido um peso; mas agora era como se entre os dois houvesse uma espada de fogo.
(...) Por fim Lancelot se aproximou dela e deixou um beijo suave na sua testa, na pequena lua azul da sua testa, que ardeu como fogo.
Sua voz foi suave e intensa:
- Todos os deuses me proíbem invadir o que a Deusa reservou para ela, querida prima. Você é tão sagrada como a própria Deusa.
Ele a segurou perto, tremendo. Ela percebeu o tremor, e a felicidade a invadiu, quase dolorosa. Não lembrava mais como era ser feliz, até esse instante.
(...) Se viu refletida nos olhos de Lancelot, e soube que era linda, que ele a desejava, mas que seu amor e respeito por ela eram tão grandes que se obrigava a impor limites.

(...) Deitaram juntos na grama, sem se tocar, cobertos com o manto da capa dele. Morgana dormiu sem sonhar, ciente que tinha as mãos ainda enlaçadas às dele. Ao acordar, sentou para decorar cada linha do rosto dele, com feroz ternura.
(...) Ele acariciou a bochecha dela, e ela o abraçou com todas suas forças, ouvindo seu coração no peito morno. Ele levantou o queixo dela, e seus lábios se encontraram.
- Se você não fosse consagrada à Deusa...- ele murmurou.
- Se não fosse...- respondeu ela.
- Fica perto, deixa te abraçar. Jurei não... pecar.
Ela fechou os olhos, não importava mais. Iam juntar seus lábios mais uma vez, mas Lancelot ficou tenso, como se ouvisse algo imperceptível. Ela se afastou.

- O que é isso? - perguntou ele.
- Não ouço nada - respondeu, tentando ouvir por cima do vento, das aves e do som da água. O som chegou novamente, como um soluço.
- Alguém chora, parece uma criança - disse ele, e se levantou, correndo.
- Pra lá!
(...) Na água, encontraram uma jovem com água até o tornozelo.
- De fato ela está aqui, mas não é uma sacerdotisa - disse Morgana.
Sua beleza era deslumbrante. Branca e dourada, a pele como de marfim, os olhos de um claríssimo azul, o cabelo como ouro vivo. Segurava o vestido tentando não molhá-lo, e chorava desconsolada, estranhamente sem desfigurar o rosto, ficando ainda mais bela.
- O que você faz aqui? - Perguntou Morgana. - Se perdeu por acaso?
A jovem olhou fixamente: - Achei que ninguém pudesse me escutar. Que lugar é este? A terra se mexeu e me encontrei aqui, nas águas. Nunca estive aqui, embora conheça o convento há quase um ano.- E fez o sinal da cruz.
Subitamente Morgana percebeu o ocorrido. O véu tinha se debilitado, como ocorria em pontos de poder muito concentrado; a jovem devia ser poderosa, já que percebia através do véu. Podia ocorrer uma visão fugaz, mas desta vez tinha realmente atravessado a fronteira do outro mundo. Lancelot se apressou em carregar a jovem até terra firme, e a jovem não chorou mais. Olhou para Lancelot com olhos de admiração. E olhou para Morgana.
-Vocè é do povo das fadas? Ia fazer o sinal da cruz mais uma vez, mas parou: Não, você não é um demônio, ou teria sumido com o sinal da cruz. Mas é pequena e feia, como o povo das fadas.
Lancelot falou com firmeza: - Não, não somos demônios. E acho que podemos achar o caminho até esse teu convento. O coração de Morgana virou do avesso ao ver que ele olhava para a desconhecida exatamente do mesmo jeito que ela mesma tinha olhado para ele há apenas uns momentos; com amor e desejo, quase com veneração. Se enxergou com os olhos de Lancelot e os da estranha donzela dourada: pequena, morena, com um signo bárbaro gravado na testa, coberta em lama, os pés sujos, os braços nus. Pequena e feia, como o povo das Fadas. Morgana das fadas. Assim a chamavam quando ainda era pequena, provocando-a. (...)
-Qual é teu nome? - perguntou Lancelot. - Guinevere - respondeu a jovem loura.
- Que nome mais... lindo- murmurou ele. - Digno da dama que o carrega.
Morgana sentiu tanto ódio que achou que ia sumir. As cores do dia tinha sumido na bruma, no pântano. E com eles toda sua felicidade também.


(...) Chegam ao convento... lará lará... (...)

Morgana fechou a bruma, e com ela Lancelot não viu mais o rosto dela, já na segurança do convento.
- Como você fez isso, Morgana?
- Que coisa?
- Subitamente você parecia minha mãe. Alta, distante, quase... irreal. Como de outro mundo. Não devia ter feito isso, assustou essa coitada criança.
Morgana mordeu sua língua com ira.
Depois respondeu, enigmática:
- Sou o que sou, primo. E apertou o passo pela trilha. Tinha frio e estava cansada, como se estivesse doente por dentro. Desejava a solidão da casa das donzelas. Lancelot parecia ter ficado para trás, mas não se importou. Que se virasse para encontrar o caminho, pensou ela.

A todo isto, eu digo: Hein?

Ciúme é o pior sentimento que o ser humano pode sentir. É o motor do ódio, do rancor, e na maioria dos casos o motivo dos piores desentendimentos entre as pessoas. Por isso, lembrem-se crianças: Quando vocês ficam com ciúmes, ficam parecendo pequenos e feios, como o povo das fadas. Ou como o próprio Lancelot falou, "você está parecendo sua mãe".

E para quem tiver coragem, o longíssimo episódio que comentei agora no livro dura o total de 3 páginas. Eu disse que o livro é lento...

Até a semana que vem!

4 comentários:

Wally disse...

E o primeiro comentário vai ser meu mesmo. Este post me cansou, foram 150 minutos escrevendo e lendo, lendo e escrevendo. Mas valeu o esforço.
Posso dizer agora sabendo que este livro é mais lento de ler que o próprio Senhor dos Anéis, que até agora levava o título de livro denso do século passado. Vai o prêmio antecipadamente para brumas, merecido. Mas um dia eu termino de ler.

Anônimo disse...

"Os homens do livro são apenas parte do cenário" -> e em que situação os homens não são apenas parte do cenário? hehehehe
Brincadeiras à parte, quando eu li Brumas eu talvez tenha iniciado a leitura sem nenhum pré-julgamento, pois não lembro de ter essa sensação de feminismo forte (nem Gabriel comentou sobre isso, e logo depois ele releu a trilogia do Cornwell pra comparar). Também não achei o livro parado, lembro que demorei pra ler por falta de tempo mesmo. Mas ainda acho que, feminista ou não, a visão da Marion é interessante porque foge do lugar comum, ainda que não fuja da história. Eu vi o livro como um outro ponto de vista, não como um manifesto feminista.
Mas vá postando sobre ele sim, é bom pra refrescar minha memória tbm!
Beijos!
(ah, já votei no seu blog lá no concurso que não lembro o nome!)

Wally disse...

Rê,

Muito Obrigado Meeeesmo pelo comentário e pelo voto! De fato, não é pra ler meu blog como uma crítica não mal sentido; o livro consegue fugir pra caramba do lugar comum, e nisso é quase que uma inspiração para meu próprio blog, que busca fazer o mesmo. Tenho esse meu estilo meio anárquico de escrever, sarcástico muitas vezes, mas não é por me fingir de simpático, é meu jeito de abaixar o discurso para as massas. Vale mencionar a revista Mundo Estranho, que faz exatamente o mesmo: abaixa o discurso para levar aos jovens e adolescentes assuntos que apresentados de forma tradicional somente afastariam o leitor (resumindo, pode ficar muito chato).
Obrigado de novo!

Anônimo disse...

Wally, teu estilo é ótimo, especialmente porque você é muito sincero nos comentários sobre as obras que analisa e não diz as coisas sem um bom embasamento, sempre comparando com outras obras e justificando suas opiniões positivas ou negativas. Inclusive dou um tanto de risadas por aqui, rs.
Bjos!