No post da semana passada contei para vocês sobre Mordred, e falei um pouco das suas origens. Entre elas, comentei uma das vertentes, que coloca ele como filho do rei Lot de Orkney e Anna. O fato é que esta Anna não é Morgana, como falei brincando no post passado, mas trata-se de Morgause, que por esses loucos cruzamentos de história é meia-irmã de Arthur. Sendo assim, Mordred é filho e sobrinho ao mesmo tempo. Isto é o que ocorre também no "Brumas", onde Mordred é filho de Morgana. Vamos ordenar a árvore um pouco:
Temos a Igraine, Morgause e Vivian, três irmãs. Igraine é casada com Gorlois, e tem uma filha, a jovem Morgana. Mais tarde, Uther mata Gorlois e pega Igraine, de quem nasce Arthur. Assim, Morgana e Arthur são irmãos por parte de mãe. Mais tarde, nas festas de Beltane, Arthur pega Morgana, de quem nasce Mordred, que foi criado por Morgause como um filho. Mordred é então filho da sua própria tia, pelo menos é a versão do Brumas.
Só que aqui tem um probleminha. Só como lembrete, o Le Mort d'Arthur de Malory foi publicado por Caxton em 1485, mas tivemos outras versões muito antes. Mas vamos falar do Malory:
Neste caso Morgause é irmã de Morgana, e portanto ambas são filhas de Igraine e Gorlois (o duque de Cornwall). Mas para entortar mesmo a história, Arthur teve um affair com Morgause (não com Morgana), e foi desse deslize que nasce Mordred. Olha a virada de folha.
Não bastasse essa confusão, o nome Morgause é bem tardio na lenda, e demora bastante para aparecer. Ele não aparece nos registros "oficiais" como seria o texto do Geoffrey de Monmouth, o mesmo o Gildas. Morgause parece ter surgido ao acaso, inventada por algum autor no meio da história.
O fato é que a rainha do Lot, rei de Orkney, não é outra que Anna (isso pelo menos segundo o Geoffrey), mas quando vamos ver o texto do Malory eis que aparece uma tal de Morgause.
Outro fator curioso é que os personagens de Morgause e Morgana se misturam muito, e trocam lugares várias vezes. O perfil mais serelepe da Morgana encaixa mais com certas histórias, mas no fundo Morgause também é pintada como uma mulher cheia de qualidades duvidosas. Embora bela e praticamente imune ao passo do tempo, Morgause é muito inconformada e quer um destino maior. Não lhe basta ser rainha, quer ser "A" rainha, ou seja a High Queen, mesmo sem um rei do lado. Assim, impulsiona o jovem Mordred via argumentos melindrosos, se valendo de artimanhas e intrigas para que possa galgar um a um seguidores que o tornem poderoso. Mas isso tudo é no fundo um plano para ela virar rainha, através do poder do filho.
Com a influência das traduções e contos medievais (onde a Igreja começa a ter um peso enorme no rumo do texto) o papel de Morgause fica um pouquinho mais recatado, mas é Morgana que passa a ser a bruxa, a fada má, a praticante de feitiçaria e do obscuro. As origens de Morgana (considerando os contos originais) passam a jogar contra ela, deixando de ser a curandeira e benfeitora para adotar o papel da "maligna".
Vamos colocar dois exemplos que lembro bem. Se vocês lembram do conto de Eric e Enide, Eric pede ao Rei Arthur para celebrar o casamento, e assim o rei convida seus amigos mais ilustres, entre eles o Guingomar, senhor da ilha de Avalon e amigo de Morgana. Quer dizer, Morgana até aqui era boa gente, e não tinha relação nenhuma com Arthur.
O segundo exemplo é no conto mais recente que trouxe no blog, o de Yvain, o cavaleiro do Leão. Antes dele ficar amiguinho do leão, Yvain teve um surto de loucura e virou vagabundo, se perdendo no bosque. Mas uma dama o encontrou e passou nele um hipoglós mágico... da Morgana! Dessa parte lembram, né? Aqui Morgana ainda era uma curandeira, mestre na arte das poções.
Mas muito antes disso temos outra versão ainda mais poética da Morgana, a versão celta, própria das mais antigas lendas de Gales. Nessas histórias Morgana é Morgain, a versão feminina do nome Morgan, que se mistura com Morrigan, ou mesmo Morrigu nas lendas da Irlanda. Morrigan é uma deusa celta, a deusa da morte, interpretada como três deusas em uma. Como se isso não bastasse para confundir, Modron (sim, mais um nome) era filha de Avalach com Uriens, e deve ter sido exatamente neste ponto que as lendas celtas e a lenda arturiana se misturaram, colocando o rei Uriens como o rei idoso marido de Morgana, quem planeja a morte de Uriens e posteriormente a de Arthur.
Entre outras misturas, surge Morgan Le Fay (a fada), que tem a ver com sua natureza sobrenatural; Morgan Le Fay pode aparecer como uma mulher mais nova ou mais velha, como outras pessoas ou mesmo como animais e objetos, e até criar asas, como uma fada. Mas indo fundo mesmo, Morgana era uma das três damas que levou Arthur para Avalon, depois da batalha de Camlann onde fora mortalmente ferido. De novo, três mulheres, a morte, e Morgana entre elas.
É claro que com a influência da Igreja, Morgana passou a ser mal vista, virou má companhia, simbolo do ocultismo e por aí vai. Como já contei outras vezes, a Igreja nunca aceitou o druidismo ou religiões antigas, pagãs, e foi transformando as coisas aos poucos. Nem que o Yule que virou Natal. Assim, Morgana a Fada virou Morgana a Bruxa.
Mas ainda vou falar de outra mulher que tem uma história tão complicada quanto a destas irmãs que se misturam. Acreditem, dona Guinevere é tão complicada como Morgana!
Até o próximo post!
3 comentários:
A-MOOOOO Morgana!
Sei lá, tenho uma simpatia nata por bruxas e feiticeiras e ela é uma das minhas favoritas... Acho que por isso não gostei da Morgana das Cronicas de Artur... Morgana catolica recalcada? Putz... Acabaram com ela!
Eu tb adoro a Morgaine, ô mulherzinha de personalidade definida, rsrss... Ja a Ingraine eu acho sem sal e açucar, rsrs... E Anna é tão obscura, coitada, tão raro lembrar dela!
Também amo Vivian/Nimue... Maravilhosa!
Mas quer dizer que semana que vem tem Guinever, é?
ai ai, vou me roer inteira de ansiedade!
\o/
Acho que este foi um dos posts que mais gostei!
E como é que você não se perde com todas essas versões da lenda? Eu já teria desistido faz tempo, rs...
Beijos!
@ Mara: Morgana é uma personagem fascinante, de origem bem antiga e muito rica por sinal. Ela representa tudo o que é mítico, e por isso fica tão fácil encaixá-la nas histórias. Somos curiosos por natureza sobre o que é diferente, né?
E sim, hoje tem post da Gui. Stay tuned.
@ Rê: Eu me perco pra caramba nas histórias! Isso é o mais divertido, voltar atrás para entender, ver onde se misturam, quem é quem... Lembre-se que como todos os textos são antigos, alguém já fez essas comparações, e eu tenho minha humilde parte nisso, lendo comparações de outras pessoas, e confiro com os textos que tenho para avaliar quanta verdade há no que disseram. Depois disso dou minha própria visão dos fatos, no tom de sempre, hehe...
Fico MUITO contente que tenha gostado tanto do post. Este é o tipo de post que dá mais trabalho, e é reconfortante saber que as pessoas gostam de ler, afinal, o blog é para isso, certo?
Até daqui a pouco, e obrigado pelos comentários!
Postar um comentário