Relíquias

A semana que acabou de passar estive em Munique, Alemanha. Conversei muitas vezes com um colega meu que também costuma viajar a trabalho que de fato nunca sabemos qual será a última viagem para essas terras; cada viagem parece a última, já que com o tempo, a experiência e a mudança nos cargos fica cada vez mais difícil sermos escalados para efetuar uma viagem destas. É lógico que a oportunidade de conhecer outros lugares interessa a todos, e acredito que todos tem que ter a chance de viajar pra fora a trabalho; é uma experiência enriquecedora tanto profissionalmente quanto no lado pessoal. Poder conhecer outras pessoas, outras culturas, ver como teus colegas trabalham ou resolvem problemas em outros lugares abre muito a cabeça, e ao mesmo tempo descobrimos novas comidas, tradições e costumes distantes das nossas. Perdi a conta das vezes que fui para Alemanha, e sempre fico com a sensação de que é a última viagem. Tomara que esteja enganado, como estive em todas as anteriores!

Desta vez, por questões de datas da viagem e dos compromissos, consegui arranjar um pouco de tempo livre durante o dia e com isso pude visitar o Residenz Museum, que fica aberto somente em horário comercial e localizado a poucos quarteirões da Marienplatz. Nas horas que passei nesse museu vi muitas coisas interessantísimas, reflexos de uma época onde reis disputavam territórios, conquistavam lugares e esbanjavam riqueza. Mas o que mais me impressionou da visita foi uma das novas exibições abertas ao público, a das relíquias religiosas.

Para ilustrar o assunto, vou explicar um pouco o por quê da minha curiosidade. Os que me conhecem faz um tempo sabem que sou fã dos textos do Bernard Cornwell, um grande contador de histórias de batalhas relacionadas à Inglaterra. Atualmente estou lendo as crônicas saxônicas, onde com bastante frequência se fala de relíquias religiosas, mas li vários outros textos dele onde também aparecem as tais relíquias. Mas, o que seria uma relíquia?

Dentro da religião católica, são chamados de santas a pessoas que se destacaram no serviço a Deus e às quais é atribuida a responsabilidade ou mérito por milagres. Digamos, se uma pessoa muito dedicada à igreja morre, e outras pessoas pedem em oração que esta alma interceda por elas no pedido, quando este pedido se realiza é se diz que foi o santo que ajudou, ou que intercedeu; se este pedido for impossível de explicar pela ciência ou pela compreensão, é chamado de milagre.

Com o tempo, a igreja católica passou a usar objetos que aparecem na Bíblia como alegorias poderosas, carregadas de energia santa (por assim dizer), que tinham muito valor religioso e com isso eram capazes de obrar milagres poderosos apenas por estarem aí. Um  dos exemplos mais clássico de relíquia religiosa é o Santo Graal, figura central da religiosidade imbuída na lenda arturiana. Na Espanha, existe a Igreja do Santo Graal, onde por trás de um vidro blindado é exibido um cálice, supostamente o auténtico usado por Cristo na última ceia. Assim, com o tempo, outros objetos foram "achados" e devidamente embalados para exibição; a igreja precisava de poder, e com isso a demanda de objetos santos ou santificados aumentou cada vez mais, e assim foram aparecendo coisas como a pena que Noé tirou do pombo ao sair da arca, a palha do presépio onde Jesus nasceu, e coisas no estilo.

Voltando aos santos agora, chegou um momento onde alguém teve a brilhante idéia de usar restos mortais de pessoas santas ou beatas, transformando as corpos destas pessoas em altares deles mesmos. Com toda a bizarrize que isso implica, era comum dividir os ossos do morto, colocar estas partes em pequenas urnas onde pudessem ser vistos e virarem objetos capazes de propiciar milagres, como se a santidade estivesse ainda presente nos restos mortais.

Nos livros do Cornwell, isto aparece bastante seguido nas histórias, e sempre achei divertido da forma que era colocado. Por exemplo, tem um personagem incrédulo, contando que viu uma relíquia de um santo. Esta relíquia era um dedo do santo, embalsamado e dentro de um vaso de vidro decorado por pedras preciosas; ao perguntar sobre o santo, ele escuta a história de que este santo foi um martir, e ao morrer ele foi carregado por correntes de ouro até o Ceú, e com isso virou santo. A questão é que ninguém explica como foi carregado por correntes, e no meio do caminho conseguiu perder um dedo para fazer a relíquia.

Como disse há pouco, acho hilários os textos e descrições do Cornwell, e sempre me divertiu bastante quando apareciam estas relíquias. Mas para meu espanto, tudo isso é real, e pude ver com meus próprios olhos. E tenho fotos.

No Residenz Museum, por trás de uma grossa porta blindada que serve de única entrada a uma sala-cofre, estão guardadas algumas preciosas relíquias do catolicismo. Estas pessoas foram provavelmente roubadas durante a segunda guerra mundial, conclusão minha já que é sabido que Hitler fora um grande colecionador de artes e peças raras. É, o filme do Indiana Jones e a última cruzada não era tão viajado no fim das contas.

Então, seguem as curiosas e até escabrosas imagens do que vi no museu, com suas explicações onde posso comentar.

Aqui o primeiro exemplo do que estou falando acima. O que enxergam nessa foto é um painel, quase um papercraft, feito com os OSSOS de alguém, ricamente decorado com filetes de ouro e com pedras preciosas. Isso, ladies and gentlemen, é uma relíquia do catolicismo.
Não lembro ter visto a quem pertenciam esses ossos, nem muito menos tenho como afirmar que são de fato de quem supostamente pertencem, mas não deixa de ser uma imagem espantosa.










Aqui vai ficando um pouco pior. Já vemos um osso nítidamente reconhecível, pelo tamanho algum osso curto do pé, ou talvez até de algum animal. Na peça, uma pequena placa diz S.BARBARA. Sem comentários.































As duas peças acima merecem uma menção especial. Ambas as fotos são da mesma peça, um objeto riquísimo em pedras e metais preciosos, do tamanho de um trofeú de uns 60 cm de altura, onde a foto da direita é a continuação da foto da esquerda. O toquinho amarelo que vemos no tubo é supostamente a esponja usada para secar o suor e o sangue de Cristo quando colocaram a coroa de espinhos, e nos três tubos abaixo vemos um galho do espinheiro, uma peça irreconhecível (talvez um pedaço de tecido) e uma pequena cruz de madeira. Sem querer ser sacrílego, a palavra que me veio à cabeça quando vi isto foi Epic.

Agora vamos aos bizarros, pra valer. Apresento para vocês, o FÊMUR de São Matias Apóstolo. Pelo menos, é o que diz na gravura acima do tubo (foto da direita).





















Agora, se um fêmur já é impressionante o bastante, o que posso dizer de um conjunto de mãos mumificadas, ainda com restos pretos da pele?





















As fotos não são muito nítidas, mas por um lado melhor. Ao vivo é bem impressionante. Mas como vocês já esperavam, não termina por aí, e estou deixando o melhor (ou pior?) para o final. O que tem aqui dentro? Basta ler o texto em latim, é fácil.


Descansa em um requintado travesseiro coroado por pérolas e flores de pedras preciosas, nada mais e nada menos que o CRÂNIO de João Batista. É, exatamente, O João Batista. Tinha outras cabeças como esta em exibição, no mesmo esquema de cobrir o rosto e deixar só o topo descoberto. Mas, outro mártir da igreja não deu tanta sorte, e ganhou uma relíquia menos inibida, menos discreta talvez. E com isso encerro o post.


Estão vendo o que tem na casinha de cima? Vou mostrar mais de perto.


Acredito que, passada a impressão inicial, devem ter notado que este crânio não tem dentes. Na antiguidade, as pessoas não ficavam com seus dentes muito tempo, pela falta de higiene e qualquer cuidado na alimentação, mas neste caso acho muito mais provável que os dentes desta pessoa se encontrem agora dentro de outras relíquias, aguardando sua vez de produzir um milagre. 

Na minha opinião sincera, fiquei muito, muito chocado quando dei de cara com estas peças, e me espantou o que eu chamaria de falta de respeito com o descanso dos restos mortais. A religião cristã dá muita importância à morte; é um momento fundamental onde a alma descansa e aguarda pelo Juizo Final. Mas, para alguns catôlicos dentro da Igreja, estes santos e mártires não eram dignos de descanso, e seus corpos continuam assim, desmembrados e expostos na obrigação de abençoar um local, e tornar rico quem o possuir através das visitas para ficar perto da milagrosa relíquia. Como objeto dentro de uma peça literária, são fascinantes, mas nunca passou pela minha cabeça que de fato esses objetos fossem tão reais ao ponto de podermos encontrá-los hoje em dia. Mais uma história para contar no meu livro.

Até o próximo post!

7 comentários:

Gabriela disse...

Simplemente impresionante!!!!

Gammelo disse...

Incrivel... eu num sabia... coitado do joão batista

Anônimo disse...

Também não sabia que isso existia de verdade, ou melhor dizendo, que isso existe AINDA! É só um "museu" da história católica ou tem algum doido que ainda acredita nessas relíquias?
Gosto muito do Bernard Cornwell também por colocar de forma tão irônica a questão das relíquias. Era Derfel que tinha um osso do seu cão, e o cultuava como santo só pra tirar sarro e todo mundo acreditava, né?
Ah, eu duvido que qualquer dessas relíquias seja de quem dizem ser. Pra mim são só mais artifícios da igreja para demonstrar poder e abocanhar fiéis ingênuos.
Beijos e adorei o post!

Marion disse...

É bizarro demais tudo isso. Não entendo como é aceitável profanar o corpo de um santo para ter as tais relíquias. Não faz sentido algum.

Eu acho que nada deve ser realmente o que dizem que é. Principalmente a esponja de Jesus.

Eu acho que esta exposição ia me dar arrepios.

Adorei o post amor!

Beijos

Arthur Pandeki disse...

Oi Wally,

Eu sei que vai ser difícil de acreditar, mas... Só eu sabia de uma coisa dessas? Quero dizer, esse tipo de costume religioso acontece há séculos e mais séculos, com relíquias que podem ser vistas ainda no nosso tempo. Essa "exposição" realmente é macabra, eu nem sei se chegaria perto, mais fácil rolar uma maldição do que um milagre, rsrrs.
Minha opinião é semelhante a da Marion, pode até ter existido esponja e tudo mais, mas eles podem ter pegado qualquer coisa, no intuito de criar o ícone.

Mistérios...

Wally disse...

Caramba, 5 comentários! Nova marca! Vamos lá:

@Gabriela: es increíble, no te hacés una idea lo que es eso en vivo.

@Gammelo: Com certeza tem muita gente que nem sabia disso! Eu soube por ler alguns livros, mas achava que fosse mais uma coisa de ficção do que um fato consumado.

@Rê: acho que é impossível não lembrar do Cornwell ao ver essas coisas cara a cara. Eu ainda mal acredito no que vi, ainda bem que tenho as fotos, e agora um post para me provar que de fato vi aquilo!Derfel tinha o osso do seu cachorro, mas acho que na saga do Arqueiro que explorou isso realmente a fundo, com uma ironia deliciosa.
@Marion: É uma pena que essa sala não estava aberta ao público quando vc esteve lá, mas acho que ainda tem muita coisa que não viu a luz. Munique guarda muitas coisas ainda sem restaurar do tempo da segunda guerra, ao ponto que tem muitos aposentos do Presidenz que ainda não foram restaurados. Da próxima vamos juntos!
@Arthur: Na verdade, não me surpreende que você conheça o assunto das relíquias, o que me surpreende é tão pouca gente conhecer! Havendo tantas escolas catôlicas, tanto acesso à informação, não entendo como uma coisa como essas é tão pouco divulgada. Sabe se tem alguma coisa parecida no Brasil? Tipo, os dentes do Tiradentes?

Obrigado pelos comentários!

Mara Sop disse...

Eu li seu post no mesmo dia que conversamos, mas acabei não comentando nada... Fascinante essas fotos! Não tem problema tirar as fotos? A maioria dos locais que tem arte tão antiga assim, não deixa fotografar, né?
Vc disse que se surpreendeu ao ver tanta arte "morbida", mas sabe que eu sempre achei tudo tão trivial, rsrs... Deve ser o meu encanto pelo egito e o fascinio pela mumificação que não me deixa me "espantar" com essas coisas...
Anywayz, amei mesmo o post, e aguardo mais coisas vivenciadas e registrada dessas suas viagens. É tão gostoso de ler sobre, que tenho a sensação de estar ao seu lado vendo tudo acontecendo em tempo real. Muito boa essa sensação!

beijocas