Comecei a ler (timidamente) o livro do post anterior, do Howard Pyle. Antes do primeiro capítulo vem um prólogo, que na verdade não sei porque o autor colocou isto como prólogo quando podia perfeitamente ser o primeiro capítulo.
De um jeito bem resumido, direto e ligeiro (quase como um "cenas do capítulo anterior"), o autor enumera alguns personagens, e engata a história com o Arthur já nascido. O Merlin faz uma profecia para o Uther, avisando que morreria de uma doença e para evitar o caos total em Camelot deveria proteger seu filho. Assim, Uther deu seu filho para Sir Ulfius, seu braço direito e mais honrado cavaleiro, quem na calada da noite sumiu com o Arthur.
A história segue com a morte de Uther, e a anarquia se instaurando no reino. Ninguém tinha mais coragem de viajar de uma cidade à outra, para não ser vítima de roubo, ou mesmo caçado por mercenários e vendido como escravo. Se perdeu toda forma de lei, e somente as grandes cidades sobraram, com governadores avarentos e egoístas.
Aqui a história fica bem ecumênica, já que o bispo de Cantebury manda chamar o Merlin... para pedir ajuda! Em situações normais, a Igreja mandaria chamar um bruxo para queimar na estaca, fazé-lo confesar que está possuido, etc,etc, mas neste caso y para minha surpresa o Merlin foi chamado na posição de sábio conselheiro. Wow.
Merlin falou para o bispo, "eu, com meu dom da profecia, posso te dizer que está por chegar o único e verdadeiro rei, e um milagre acontecerá, uma aventura, onde quem for vitorioso será o rei de toda Bretanha por direito". O bispo respondeu, "mas, como tens o dom da profecia, não podes dizer-me quem será este rei?"; ao que Merlin retruca com "só posso dizer o que vi, mas agora, devo partir para fazer a minha magia". O bispo se despede com "faz o que tiver que fazer".
É impressionante como o bispo se mostra conivente com uma declaração explícita de "cara, vou fazer magia... cê sabe que isso é suspeito, né?"; mas, como era do interesse de todos, acho era bem mais fácil deixar passar essa. O mundo não mudou tanto, afinal.
Mas, entre os que temos intimidade com a lenda, sabemos que o Merlin antes do que sábio era sim muito experto. Ligeiro, até. Ele fez sua magia, e fez aparecer na praça da igreja uma pedra quadrada, como de mármore; nessa pedra, uma bigorna, e enterrada na bigorna até a metade, uma espada preciosa, com a já famosa frase:
Whoso Pulleth Out this Sword from the Anvil
That Same is Rightwise King-Born of England.
Aquele que retirar a espada da bigorna, é o rei da Inglaterra por direito de nascença. Aham. Isso tudo cabe na espada, ou melhor, na metade da espada que ficou para fora. O Merlin tinha letra pequena, pelo jeito. Digamos, na letra que vocês estão lendo agora já ocupa uns 20 centímetros.
Neste ponto, o Howard Pyle tenta se justificar (não entendi muito bem os motivos para isso), com estas palavras:
Esta é a maravilha da espada na bigorna (na pedra), e qualquer pessoa pode conferí-la facilmente em um livro escrito muito tempo atrás por Robert de Boron, chamado "Le Roman de Merlin".
Creio que é o primeiro livro que vejo com uma citação tão explícita à fonte. Mas, vamos nos aprofundar um pouco mais do que o fez Howard. O "Le Roman de Merlin" é um poema francês, que serviu de base para o que hoje conhecemos como o documento mais antigo em inglês sobre a lenda arturiana, o "Prose Merlin". A universidade de Cambridge guarda este manuscrito sob o folio MS Ff.3.11, que foi analizado e estudado incontáveis vezes desde sua descoberta.
O "Prose Merlin" e práticamente contemporâneo ao "Le Morte d'Arthur" do Thomas Malory, só que por uma diferença de poucos anos o Prose leva o título de texto mais antigo. Enquanto o Le Morte conta a história do Rei Arthur através da junção literária de diversas fontes, o Prose é um compilado de traduções de documentos já existentes, ordenados cronologicamente na vida do Merlin.
Podemos dizer que o Prose Merlin se divide em duas grandes partes, onde os primeiros 5 capítulos estão baseados no poema do Boron, e vão do nascimento do Merlin até a coroação do Arthur. A segunda parte do livro desenvolve o reinado do Arthur, sua guerra com os saxões, e convida para a festa uma multidão de novos personagens. Essa parte é interessante, mas vou deixar para outro post. Quem sabe o próximo.
Pesquisei um pouco mais ainda sobre as fontes, encontrei um livro de Henry B. Wheatley chamado "Merlin : or, the early history of King Arthur : a prose romance", propriedade da Universidade de Michigan e disponível abertamente para estudo neste link. Achei este livro procurando o manuscrito do Boron, mas é o mais próximo que consegui chegar. Infelizmente não encontrei meios online de pesquisar mais próximo do original, mas para que entendam melhor de onde viemos e onde estamos, a sequencia é esta:
- Poema do Robert de Boron (séc. 12), que inspirou o ->
- Prose Merlin, manuscrito (capítulos 1 a 5 da primeira parte), que consta no ->
- Merlin, a prose romance de H.B. Wheathey, entre 1800 e 1900.
No texto do Wheatley, na página 98 do capítulo 6, encontramos este trecho:
and whan they com oute of the cherche thei sawgh it gan dawe and clere, and saugh before the cherche dore a grete ston foure square, and ne knewe of what ston it was; but some seide it was marble. And above, in the myddill place of this ston, ther stode a styth of Iren that was largely half a fote of height, and thourgh this stithi was a swerde ficchid in to the ston.
Este texto aparece quase que idêntico no "Le Morte d'Arthur", e práticamente igualzinho no texto do Howard Pyle (com inglês mais moderno, claro). Toda essa volta que dei foi para dizer que o Howard Pyle escreveu que a espada era cravejada em pedras preciosas, mas essa particularidade não consta nem no texto do Wheatley, nem no texto do Thomas Malory. Ou seja, creio que essa parte foi inventada pelo Howard...
Não me olhem com essa cara; eu apenas fiz o que ele falou: foi conferir. E o Howard estava errado.
Vamos ver que mais eu descubro! Até o próximo post!