Nennius

Em um post de 2008 comentei sobre as origens da lenda arturiana, e como ela se misturou com a vida real ao ponto de ganhar espaço na relação de reis legítimos nos livros de história. Nesse post falei de Gildas, Nennius e Bede, três autores que deixaram suas marcas contando o surgimento da Britania e suas idas e voltas com as invasões dos pictos, saxões e tantos outros.

Hoje é a vez de falar de Nennius, a quem dediquei uma das leituras mais demoradas que já fiz. O texto é antigo, pesado em alguns trechos, mas dá recompensas para aqueles que não desistem e vão até o fim dele.

Nennius foi um monge galés, que viveu por volta do ano 800. Foi uma pessoa muito instruída, ao ponto de descrever o alfabeto bretão, que ganhou o nome de alfabeto Nenniano. Devemos a ele um dos textos mais ricos sobre os acontecimentos históricos da Britania, sob o título de Historia Brittonum.

Sem mais delongas, apresento o protagonista de hoje: Nennius.

May, therefore, candour be shown where the inelegance of my words is insufficient, and may the truth of this history, which my rustic tongue has ventured, as a kind of plough, to trace out in furrows, lose none of its influence from that cause, in the ears of my hearers. For it is better to drink a wholesome draught of truth from the humble vessel, than poison mixed with honey from a golden goblet.

"Seja, portanto, mostrada franqueza onde a elegância das minhas palavras for insuficiente,  e que a verdade desta história, onde minha rústica língua ousa se aventurar como o arado fazendo sulcos, nada perca da sua influência por esta causa nos ouvidos dos meus ouvintes. Porque é melhor beber uma mistura saudável de uma vasilha humilde, do que veneno misturado com mel em um cálice de ouro."

-Historia Brittonum de Nennius, 800 d.C.

Achei fascinante essa introdução. Tanto é assim, tão inspiradora, que usei como introdução no meu livro. É.. o livro finalmente começou. Mas isso fica para conversas entre amigos, por fora do blog.

O texto do Nennius se propõe contar toda a história da Britania, desde o começo da vida nas ilhas até os dias contemporâneos ao autor. Quando digo começo da vida, é isso mesmo que estão entendendo: os pergaminhos misturam religião, lendas, mitologia e história como se fosse tudo parte do mesmo contexto. Assim, vemos o surgimento de Roma através de Rómulo e Remo alimentados pela loba, encontramos Noé e seus filhos povoando o mundo, e germânicos que incluem os primeiros deuses na sua linhagem. Toda essa mistura contada como a mais pura verdade. Ao menos, era a realidade da época, e quem somos nós para argumentar o contrário, não é? Tudo isso é história, ao menos para Nennius.


Um dos maiores protagonistas do texto é Saint Germanus, ao qual se atribuem os mais diversos e mirabolantes milagres. Chuva de fogo nos infiéis, bezerros que aparecem inteiros ao dia seguinte depois de virar churrasco, e outras proezas religiosas dignas de um herói. É inevitável sorrir ao ler essas coisas, e encontrar descrições tão semelhantes nos textos do Bernard Cornwell. Me divirto muito porque vejo o que inspirou esses autores que tanto gosto, e entendo ainda mais como eles constroem as histórias pegando retalhos espalhados na literatura antiga.

Li o Historia Brittonum com bastante ansiedade, esperando o encontro com o Arthur pseudo-histórico;  levou uma eternidade até chegar nele. Chegando ao fim do texto encontramos os capítulos onde finalmente lemos o nome do Arthur, no papel de comandante de batalha. Específicamente, nos blocos 50 e 56:

50. St. Germanus, after his death, returned into his own country. At that time, the Saxons greatly increased in Britain, both in strength and numbers. And Octa, after the death of his father Hengist, came from the sinistral part of the island to the kingdom of Kent, and from him have proceeded all the kings of that province, to the present period.
Then it was, that the magnanimous Arthur, with all the kings and military force of Britain, fought against the Saxons. And though there were many more noble than himself, yet he was twelve times chosen their commander, and was as often conqueror. The first battle in which he was engaged, was at the mouth of the river Gleni. The second, third, fourth, and fifth, were on another river, by the Britons called Duglas, in the region Linuis. The sixth, on the river Bassas. The seventh in the wood Celidon, which the Britons call Cat Coit Celidon. The eighth was near Gurnion castle, where Arthur bore the image of the Holy Virgin, mother of God, upon his shoulders, and through the power of our Lord Jesus Christ, and the holy Mary, put the Saxons to flight, and pursued them the whole day with great slaughter. The ninth was at te City of Legion, which is called Cair Lion. The tenth was on the banks of the river Trat Treuroit. The eleventh was on the mountain Breguoin, which we call Cat Bregion. The twelfth was a most severe contest, when Arthur penetrated to the hill of Badon. In this engagement, nine hundred and forty fell by his hand alone, no one but the Lord affording him assistance. In all these engagements the Britons were successful. For no strength can avail against the will of the Almighty. 

Neste texto encontramos Arthur como o herói da parada; o texto já começa com "Foi então que o magnífico Arthur..". Ele liderou 12 batalhas ao lado dos reis da Britania e seus comandantes de guerra, vencendo e repelindo os saxões. A maior batalha de todas é a última, a de Monte Badon, onde segundo o Nennius " novencentos e quarenta cairam pela mão dele, sem ninguém além do Senhor no seu auxilio". E termina com "Em todos estes encontros os Bretões tiveram sucesso. Porque não há força que prevaleça contra o desejo do Todo Poderoso".  Palavra de Nennius, minha gente. 

Pensa só em liquidar 940 inimigos sozinho. É um número meio cabalístico, não é? Por não dizer exagerado. Por mais que as armaduras do século 5 não passavam de algumas camadas de couro sobrepostas ao gibão, ainda é um esforço incrível para erguer uma espada ou um machado de guerra e trucidar centenas de pessoas. É apenas um palpite, mas acho que o número está um pouco inchado. Vamos ao bloco 56.

 56. At that time, the Saxons grew strong by virtue of their large number and increased in power in Britain. Hengist having died, however, his son Octha crossed from the northern part of Britain to the kingdom of Kent and from him are descended the kings of Kent. Then Arthur along with the kings of Britain fought against them in those days, but Arthur himself was the military commander ["dux bellorum"]. His first battle was at the mouth of the river which is called Glein. His second, third, fourth, and fifth battles were above another river which is called Dubglas and is in the region of Linnuis. The sixth battle was above the river which is called Bassas. The seventh battle was in the forest of Celidon, that is Cat Coit Celidon. The eighth battle was at the fortress of Guinnion, in which Arthur carried the image of holy Mary ever virgin on his shoulders; and the pagans were put to flight on that day. And through the power of our Lord Jesus Christ and through the power of the blessed Virgin Mary his mother there was great slaughter among them. The ninth battle was waged in the City of the Legion. The tenth battle was waged on the banks of a river which is called Tribruit. The eleventh battle was fought on the mountain which is called Agnet. The twelfth battle was on Mount Badon in which there fell in one day 960 men from one charge by Arthur; and no one struck them down except Arthur himself, and in all the wars he emerged as victor. And while they were being defeated in all the battles, they were seeking assistance from Germany and their numbers were being augmented many times over without interruption. And they brought over kings from Germany that they might reign over them in Britain, right down to the time in which Ida reigned, who was son of Eobba. He was the first king in Bernicia, i.e., in Berneich.

Aqui encontramos o Arthur já descrito como Dux Bellorum, ou comandante de batalha. A influência cristã do Nennius fica mais evidente ainda, ao comentar que na oitava batalha os Bretões massacraram impiedosamente os Saxões graças a uma imagem da Virgem Maria que o Arthur carregou no ombro durante toda a batalha. Opinião pessoal, não acho que associar um santo a uma guerra seja uma idéia válida, mas era a visão da época. Na verdade, até hoje a humanidade briga por religião, e mata em nome dela. Para mim é uma coisa abominável. Mas, voltando ao texto, sinceramente acho muito improvável que Arthur fosse cristão. Não condiz com a época, e muito menos com a região. Nem os romanos do século 5 estavam inteiramente catequisados, ainda rolavam cultos aos deuses romanos e sua mitologia. Se bobear, tem isso até hoje, mesmo com as figuras imponentes do Papa, o Vaticano e sua investidura romana. Mas viajei demais, vamos voltar ao Nennius.

Como era de se esperar, a esta altura do texto o total de mortos pelo Arthur aumentou para 960; podemos pensar que o texto está errado, ou que o Arthur ainda estava lutando e por isso o número aumentou em 20 mortos em apenas uns parágrafos. Acho que estavam se esforçando para chegar em 1000, mas acabaram os reforços dos saxões e a batalha teve que parar. Ainda assim, eu faria um antidoping no Arthur.

O pergaminho se perde um pouco aqui em genealogias e lugares, e finalmente encontramos uma última menção no bloco 73 sobre algum Arthur, que não sabemos se é o Dux Bellorum ou outro Arthur homónimo. Seja como for, ele deixou sua marca. Bom, não foi bem ele, foi o cachorro dele. Olha só:

73. There is another marvel in the region which is called Buelt. There is a mound of stones there and one stone placed above the pile with the pawprint of a dog in it. When Cabal, who was the dog of Arthur the soldier, was hunting the boar Troynt, he impressed his print in the stone, and afterwards Arthur assembled a stone mound under the stone with the print of his dog, and it is called the Carn Cabal. And men come and remove the stone in their hands for the length of a day and a night; and on the next day it is found on top of its mound.
There is another wonder in the region which is called Ercing. A tomb is located there next to a spring which is called Licat Amr; and the name of the man who is buried in the tomb was called thus: Amr. He was the son of Arthur the soldier, and Arthur himself killed and buried him in that very place. And men come to measure the grave and find it sometimes six feet in length, sometimes nine, sometimes twelve, sometimes fifteen. At whatever length you might measure it at one time, a second time you will not find it to have the same length--and I myself have put this to the test.

Foi assim que apareceu o nome de Cabal, que em outros textos aparece como Cavall, e o cachorro do Arthur ganhou nome. Sobre o filho do Arthur chamado Amr e seu túmulo retrátil, não tinha lido nada antes, para mim é novidade. Já vi que minha viagem para Inglaterra e Gales vai incluir uma fita métrica na bagagem.

Querem ler mais? Curiosos como texto original? Podem encontrar o texto na íntegra e alguns outros detalhes nestes links:
 

Ainda não pensei no post da semana que vem. Alguma sugestão? Comentem!

Até o próximo post!

Camelot 3000 - Agora Tupiniquim

Galera, post rápido enquanto não termino del ler o "Historium Britannae" no original... Essas coisas demoram!

Acontece que a Panini (aquela do album de figurinhas do mundial, sabe?) lançou em setembro a versão brasileira da edição de luxo do Camelot 3000. Linkei o post que escrevi sobre o gibi, para quem estiver perdido sobre o assunto. Mas, como quase ninguém clica nos links vou comentar brevemente; é um gibi onde o Arthur volta no ano 3000, no momento em que o planeta é invadido por alienígenas. Assim, a lenda da volta de Arthur toma forma, e a távola redonda é novamente convocada, agora com novas pessoas que se descobrem os antigos cavaleiros.

Tudo contente fui ver onde vendia o tal livro, e vi que por enquanto somente dá para comprar online pela Livraria da Folha. Preço: 82 reais, porém com um desconto que fica 65 reais. Prazo de entrega: 11 dias úteis, onde consta um texto que depende do fornecedor. Aí eu disse pra mim mesmo, "Como assim?" Já tive experiências péssimas onde os sites vendem coisas que não tem no estoque, mas assim é ridículo. Estou pagando pelo direito de entrar na fila, e quem sabe algum dia receber o livro. Nem pensar!

Enquanto divagava, dei uma googlada buscando o livro em outros lugares, mas em um momento caiu a ficha... por se tratar de um livro, posso comprar no exterior, que vem sem impostos! Quanto será que custa? 

O mesmo livro, capa dura, edição especial de 2008 (é, aqui foi traduzido e lançado só agora) custa exatas 25 doletas na Amazon. Acho que demorei uns 35 segundos para iniciar e concluir a compra, com prazo de entrega de 30 dias. Se fizermos a conta, vai dar quase a mesma coisa que os 11 dias úteis da Folha, só que com mais certeza que chega, e ainda no idioma original. As compras que fiz na Amazon foram despachadas na hora, portanto não devo ter surpresas.

Eu acho que poderia ter pesquisado um pouco mais, por exemplo na Alibris, que é um motor de busca em um monte de livrarias de fora, e vende até usado; mas, sinceramente, fica difícil promover a leitura por aqui com preços assim, enquanto achei justo o preço praticado pela Amazon por uma edição de colecionador. Não porque não possa pagar o que a Panini e a Folha querem me cobrar, mas porque meu dinheiro é suado e custa ganhá-lo. Afinal, o livro é o mesmo de fora, só com a tradução. É tão caro traduzir?

Quando chegar o livro tiro fotos e comento por aqui. Enquanto isso, viro meus olhos de novo para o "Historium Britannae"!


Até o próximo post!

Eleições

Bom, teve eleições hoje no Brasil, e como Camelot era uma monarquia aqui não teve eleição. Ainda assim, o fato é que são 10 da noite, e não terminei de ler o texto que estava preparando para postar hoje, portanto vai ficar para o meio da semana, ou como um post mais elaborado para o próximo finde.

Espero que tenham curtido a eleição, e que suas escolhas tenham valido a pena!