Fazendo História

No post da semana passada falei um pouco sobre Geoffrey de Monmouth, e como seu trabalho reviveu as lembranças de um tal Rei Uther, pai de um tal Rei Arthur. Eu disse também que ele usou como fonte de informações textos antigos, dos séculos V e VI; aliás, essa foi uma as primeiras coisas que disse no blog, em Junho de 2007.

Essas tais origens da lenda arturiana sempre foram ponto de discussão. Sempre que falo sobre contos como os de Tristão e Isolda, ou mesmo do Eric e Enide, comento que a base dessas histórias são antigas lendas celtas com outros personagens, mas seguindo a mesma linha argumental. Já a lenda arturiana é por sí uma compilação de histórias. Sinto uma pitadinha de orgulho do post que escrevi na Páscoa sobre o Ciclo Vulgato, que exemplifica perfeitamente o que estou dizendo.

Ontem, eram 11 da noite, estava cansado, e ainda sem idéias sobre meu post de hoje. Decidi resgatar da prateleira o livrão do John Matthews, e mesmo com o cansaço complicando minha leitura acabei descobrindo sobre o que falar hoje: Quem inspirou Geoffrey?

Antes de continuar, não é um espanto ter linkado 5 vezes meu próprio blog? Será que os assuntos estão esgotando? Bom, no seu livro o John conta que com a partida do último galeão romano da ilha da Bretanha no século V, o país ficou meio que às moscas. O império romano estava recuando, perdendo terreno e procurando segurança na sua capital; os territórios conquistados na Espanha e na Armenia ganhavam novos donos, novos conquistadores.

Restaram até nossos dias pouquíssimos textos da época que contem pra gente como foi aquele período; mas do que sobrou, podemos observar alguns fatores que mais tarde seriam decisivos. Os romanos criaram novas estradas, interligando cidades; eles levaram ao pé da letra que o caminho mais curto entre dois pontos é uma linha reta, e fizeram estradas perfeitamente retas. As vezes me vejo pensando nisso enquanto estou preso no tránsito, e lembrando da minha Buenos Aires plana e de ruas perfeitamente paralelas. Os romanos tinham razão!

Junto com as estradas, os romanos trouxeram um sistema de governo pseudo-autónomo, uma escala hierárquica onde as cidades podiam se reger por conta própria, e contavam com recursos externos para crescer conforme demanda. Nisso as estradas aportaram as rotas de comércio, fundamentais para o crescimento destas cidades com o abastecimento e a exportação da produção local.

Com o tempo, os bretões começaram a ficar mais romanizados, ou como o John disse, "mais romanos que a própria Roma". A implantação do governo autónomo funcionou, e as regras de comum acordo entre cidades fizeram a economia prosperar.

Logicamente, com a partida do imperio romano, o que estava ruim ficou pior. É fácil imaginar um disse-me-disse de anos até de fato os romanos se retirarem; quantas pessoas de confiança não disseram para seus amigos mais próximos alguma confissão sigilosa sobre o futuro do país. Mas o fato é que muitos romanos acabaram fazendo sua vida por lá, casando com nativos da ilha e formando novas famílias, ou mesmo usufruindo as terras que conquistaram como pagamento dos serviços prestados ao exército romano, buscando o sossego de produzir na sua terra. Muitas pessoas decidiram não trocar as ondulações verdes e os profundos bosques da ilha bretã pela barulhenta e fedida Roma.

Entre os terratenentes que ficaram, existiam vários reis de tribos, interessados em ganhar status e poder com a partida dos romanos. Todos, sem distinção, cobiçavam a idéia de serem nomeados o "High King", com so outros reis ao serviço deles. Assim começou a Dark Age na Bretanha. De todos estes reis, teve um que finalmente obteve sucesso nesta empreitada; seu nome era Vortigern.

Este Vortigern, por incrível que pareça, nada tem a ver com o Vortigern da lenda arturiana, aquele da torre dos dragões. O que sabemos dele vem (finalmente!!) dos textos que sobraram da época; autores dos que comentei brevemente em um post ou outro.

Existem três fontes de onde tirar informação, nenhuma delas particularmente confiável, e eventualmente até contraditórias em certos aspectos. A primeira fonte, a mais extensa, e provavelmente a mais confiável seja a do monge Gildas, cujos escritos falam de fatos ocorridos no máximo 50 anos antes do texto. Seu trabalho é conhecido pelo nome de "De Excidio et Conquestu Britanniae" (queda e conquista da Bretanha), e pode ser definida como um protesto contra o tiranismo. Gildas coloca a culpa em Vortigern para tudo, chamando-o de "promotor dos costumes pagãos" em uma terra que recentemente tinha entrado para o Cristianismo. Olha só:

Assim todos os conselheiros, junto com o orgulhoso tirano Gurthigern (Vortigern), o Rei Bretão, estavam tão cegos que para proteger seu país acabaram selando seu fim convidando para o lado deles (como lobos no meio de ovelhas) os violentos e impíos saxões, uma raça odiada por Deus e pelos homens, para repelir os invasores do norte (pictos, escoceses..).

Tirando o exagero literário do Gildas, fica claro que o país estava indefeso, pronto para o festim de qualquer conquistador. A segunda fonte é o monge Nennius e seu Historia Brittonum, o texto dele mais tardío (séc. VII) e um pouco diferente do texto do Gildas, embora relate os mesmos fatos. Nas palavras do Nennius, é um apanhado do que conseguiu achar, misturando textos vários às tradições que sobreviveram ao tempo.

Por anos os Bretões viveram com medo. Vortigern era rei, e durante seu reinado foi ameaçado por pictos e escoceses. Nesse tempo, três navios vindos da Germania trouxeram grandes homens, entre eles os irmãos Hengist e Horsa, filhos de Guietgils, filho de Guitta, filho de Wodin...(...) filho de Geta, o que os faz filhos de Deus, não o nosso Deus dos Deuses, Amém, mas do Deus dos exércitos, que eles idolatram. Vortigern os recebeu de braços abertos, e lhes entregou a ilha que eles chamaram de Thanet, que os Bretões chamam Rudhim...

De novo, é o Vortigern o grande vilão quem recebeu os saxões todo feliz e contente, embora o contexto diz que eram homens vindos de navio. Provavelmente, exilados do próprio país por crimes ou coisa parecida, mas isso nunca saberemos ao certo, acho. Era comum entre os saxões se mostrar descendentes de deuses (neste caso Wodin), o que seria um símbolo de status e reconhecimento, e fama claro.

A última referência da época vem do "The History of the English Church and People" do Venerable Bede. Muito bem, pausa aqui. Como assim, Venerable?

Conforme ao diccionário Longman de cultura inglesa, Venerable é o equivalente a Archdeacon. Eu já ouvi falar de Archbishop (arcebispo) mas nunca de Archdeacon (arcediácono). Até onde sei, diácono é o cargo de um oficial da igreja imediatamente abaixo de Padre, portanto, o que sería um Arcediácono? Quem souber favor responda nos comentários; eu vou chamar de Venerable, como na Inglaterra mesmo.

O Venerable Bede é considerado um dos mais precisos relatores do Dark-Age, e tem tudo para ser contemporâneo ao Gildas e ao Nennius. Seu livro, escrito em 731 dC, conta o seguinte:

No ano 449 do nosso Senhor, os Anglos e os Saxões vieram a Bretanha por convite do rei Vortigern em três grandes navíos, e ganharam terras no leste da ilha com a condição de proteger o país; mas sua verdadeira intenção era atacá-lo.

Os três textos concordam em certos trechos. Os guerreiros germânicos chegaram em três navios, Vortigern lhes pagou por proteção. Não era a primeira vez que os bretões negociaram com invasores, dando terras para que de certa forma sossegassem e sirvam de primeira fronteira. A única certeza é que de fato Vortigern ou seus assessores calcularam errado onde estavam se metendo.

Gildas, Nennius e Bede são o que nos restou de base sobre o Arthur histórico, a provável origem real do Arthur de ficção. E com essa colaboração imprevista, estes homens não somente contaram a história, também a fizeram.

Até a semana que vem!

2 comentários:

Anônimo disse...

É uma pena que tenha sobrado tão pouco daquela época, e que o único jeito de tentar reconstruir o que aconteceu seja pescando coisas aqui e ali, sem certeza da veracidade...
Ah, e viu Merlin ontem? Finalmente apareceu Avalon, mas se entendi direito esse foi outro aspecto bem alterado pela série, não?
Beijos!

Wally disse...

Rê, desculpa a demora para responder, mas com o atraso nos seriados somente vi o episódio ontem; sim, Avalon apareceu, e distorcida como tantas outras coisas. Ainda não pesquisei sobre os Sidhe, de onde sairam. Sei que fazem parte do bestiario mitológico, mas nao tem relação com a lenda arturiana, certeza!