Sir Kay, O Grosso

Estava eu lendo algumas bobagens na internet, como distração matinal enquanto não achava assunto para o blog. Nisso o stumble ajuda bastante, tanto em se distrair como em buscar assunto. Eis que lembrei do Sir Kay, provavelmente o cavaleiro mais desagradável e grosso de todos os tempos, odiado por todos seus companheiros e apenas tolerado por Arthur e companhia. É, nem todo mundo é bonzinho, o mundo arturiano é bem real no que diz à personalidade da turma...

Ilustração de Howard Pyle: Sir Kay quebra a espada durante o torneio.

Não sei ao certo onde começou a má fama do Sir Kay. Acho que menção mais antiga dele que conheço é do Cullwch e Olwen, mas lembrei dele esses dias ao ler um trechinho do Yvain (O Cavaleiro do Leão) na versão do Chrétien de Troyes. Este conto parece ter uma origem bem antiga, e recontado incontáveis vezes até se perder sua origem; assim como outros contos (p.ex. Cliges), o Yvain carrega uma influência nítida dos contos celtas, mais conhecido com o nome de Owein. Me lembrem de falar disso mais na frente, a história é interessante mas estou desviando do assunto de hoje...

Vai um trechinho do Yvain para vocês sentirem o drama:

Fora, à porta do quarto, estavam Dodinel e Sagremor, Kai o senescal, e Sire Gawain. Havia também sire Ivain e com eles Calogrenant, um cavaleiro muito agradável que começou a lhes contar uma história. O caso lhe acontecera não para o honrar, mas para sua vergonha.

A rainha escutava o que o cavaleiro contava. Ela levantara de junto do rei e chegara tão mansamente que ninguém a viu sentar no meio de tanta gente. E Kai, homem muito injurioso e malévolo e venenoso, disse então:
- Por Deus, Calogrenant, sois bravo, sois lesto e agrada-me que dentre todos nós sejais o mais cortês. E sei que acreditais nisso, tanto sois falto de bom senso. É justo que minha senhora pense que tendes bem mais cortesia e bravura que nós. Sem dúvida não nos pusemos de pé por preguiça ou porque não condescendemos nisso. Mas, por Deus, sire, se não nos levantamos é que não vimos minha senhora!

- Sem dúvida, Kai - responde a rainha -, eu gostaria que rebentásseis, se não vos podeis esvaziar do veneno de que estais pleno! Sois odioso e covarde por repreender assim vossos companheiros!

- Senhora - se torna Kai -, se não ganhamos com vossa companhia, evitai que percamos com ela! Não creio haver dito cousa que possam exprobar. Se voz apraz, paremos por aqui. E fazei-nos contar o que o cavaleiro havia começado.
Responde Calogrenant:

- Senhora, não me preocupo com a disputa. Por que a prezaria? Se Kai me fez ofensa, disso não me advirá o menor dano. A outros mais valentes e mais sábios, sire Kai, dissestes amiúde palavras ofensivas, pois sois useiro delas. Sempre deve a esterqueira malcheirar, a varejeira picar, o zangão zumbir, o desleal enfadar e ferir. Mas nada contarei hoje, se minha senhora houver por bem me deixar em paz. E peço-lhe que não diga palavra nem me ordene cousa que me desagrade.

- Calogrenant - disse a rainha -, não vos abalem as maldosas palavras de sire Kai o senescal! Ele tem costume de falar mal e não consegue se corrigir. Não tenhais ressentimento e contai-nos cousa tão prazerosa de ouvir. Eu vos peço. Se quereis conservar minha amizade, começai o conto de novo!

Sangue ruim, né? Ô bicho peçonhento...

Quando falei do conto da charrete (a.k.a. Sir Lancelot) vocês devem lembrar que foi exatamente por culpa de Sir Kay que a rainha Guinevere foi levada refém por Meleagrant, fiho do rei Bandemagus. Então, o histórico do Kay parece mais uma ficha corrida do que algo em que alguém possa se orgulhar. No Le Morte D'Arthur ele continua aprontando, criando desavenças entre cavaleiros o tempo todo. O capítulo II do livro VII conta como Gawain e Lancelot ficaram fulos da vida do Kay ficar caçoando do Beaumains (do conto do Cote Male Taile).

Ainda assim, como ninguém é completamente ruim, sobram a ele algumas proezas cavaleirescas. Nos contos celtas mais antigos é conhecido como "Cai o Alto", e provavelmente por sua altura avantajada ganhou o apelido de "Matador de Gigantes". Tem alguns contos onde contam como foi que derrotou alguns gigantes, geralmente em companhia de figuras conhecidas, como o Pellinore.

A pergunta é: Se Kay é tão maldoso, porque Arthur o fez cavaleiro da távola redonda?

A resposta é mais simples do que parece. Quando Arthur nasceu, foi tomado por Merlin e afastado dos seus pais (Uther e Igraine), e entregue nas mãos do Sir Ector, para que fosse criado secretamente como filho adotivo. Arthur finalmente foi revelado ao mundo quando puxou a espada da pedra, mas nesse dia ele estava apenas acompanhando seu irmão de criação, filho legítimo do Ector. Arthur fazia o papel de escudeiro do seu irmão mais velho, ajudando na hora de vestir a armadura, e cuidando as armas. Foi assim que por um esquecimento faltou a espada, e o jovem Arthur viu a espada abandonada dentro da pedra e a tirou para entregar na mão do seu irmão. O nome desse jovem filho do Ector era Kay, e mais tarde viraria senescal de Camelot, como prova de afeto que Arthur tinha pelo seu irmão de adoção.

É, vida louca...

Até a semana que vem!

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