Há um par de semanas ganhei um livro da Marion. Não esperava, mas como ela disse, viu no shopping, sabia que não fazia parte da minha coleção de livros arturianos e decidiu comprar como presente. Apenas ontem tive tempo de folhear o livro, ler a introdução e parte do primeiro capítulo; minha primeira impressão antes de ler o livro era de que se tratava de mais uma compilação das histórias arturianas, mas ao revisar ontem descobri que na verdade se trata de um trabalho acadêmico de tradução.
Lembram quando falei do ciclo vulgato? Ocorre que dentre os documentos em francês, há partes faltantes da história, especificamente no segmento da busca do graal (também conhecido como ciclo post-vulgato). Nossa sorte é que existem documentos em outros idiomas, aparentemente traduções de um original francês que não existe mais. Estes textos foram encontrados em espanhol e português.
A versão em espanhol está separada em dois fólios, um de 1515 (Toledo) e o outro de 1535 (Sevilla). Este último foi reimpresso por Adolfo Bonilla y San Martin em 1907 sob o título de La demanda del Sancto Grial, dentro de uma compilação chamada Libros de caballerias, parte I, Ciclo artúrico. Já a versão em português aparenta ser mais próxima ao texto francês do que a versão espanhola, ao observarmos detalhes sobre continuidade da história, personagens, etc. Este manuscrito português está preservado na Biblioteca Nacional de Viena, sob o código MS2594, e é de onde parte o trabalho do Heitor Megale, autor do livro que ganhei.
O Heitor é professor de Língua Portuguesa na USP aqui em São Paulo, e a proposta dele no livro é trazer uma versão atualizada, revisitada do "Demanda do Santo Graal" original. Como parte deste esforço, ele procurou outras fontes para complementar as partes faltantes do texto original, para trazer ao leitor uma versão mais completa da história.
Esta não é a primeira tradução deste texto no Brasil; até onde consegui pesquisar, a primeira tradução (ou modernização) do texto para os dias atuais foi feita por Augusto Magne no Rio de Janeiro em 1944, com algumas reedições posteriores. Houve também traduções em Portugal, mas desconheço se chegaram até aqui.
Na página do Projeto Vercial consta um extrato do texto no original, e para quem quiser saber mais do Heitor Megale, achei esta página vinculada à USP com sua bibliografia. Sobre o trabalho de tradução, encontrei também um documento de autoria dele comparando o texto do manuscrito à tradução impressa.
Apenas pela questão lúdica da coisa, vou colocar o texto como consta no Projeto Vercial (equivalente ao manuscrito), e como consta no livro que ganhei. Tirem suas conclusões! O manuscrito vem primeiro em itálico, e o texto atual logo abaixo em negrito e letras menores.
Véspera de Pinticoste foi grande gente assüada em Camaalot, assi que podera homem i veer mui gram gente, muitos cavaleiros e muitas donas mui bem guisadas. El-rei, que era ende mui ledo, honrou-os muito e feze-os mui bem servir; e toda rem que entendeo per que aquela corte seeria mais viçosa e mais leda, todo o fez fazer.Véspera de Pentecostes, houve muita gente reunida em Camalote, de tal modo que se pudera ver muita gente, muitos cavaleiros e muitas mulheres de muito bom parecer. O rei, que estava por isso muito alegre, honrou-os muito e fez servi-los muito bem e toda coisa que entendeu que tornaria aquela corte mais satisfeita e mais alegre, tudo mandou fazer.
Aquel dia que vos eu digo, direitamente quando queriam poer as mesas – esto era ora de noa – aveeo que üa donzela chegou i, mui fremosa e mui bem vestida. E entrou no paaço a pee, como mandadeira. Ela começou a catar de üa parte e da outra, pelo paaço; e perguntavam-na que demandava.
Aquele dia que vos digo, exatamente quando queriam pôr as mesas - isto era hora da noa - aconteceu que uma donzela chegou muito formosa e muito bem vestida; e entrou no paço a pé, como mensageira. Ela começou a procurar de uma parte e de outra pelo paço; e perguntaram-lhe o que buscava.
– Eu demando – disse ela – por Dom Lançarot do Lago. É aqui?
- Busco - disse ela - dom Lancelote do Lago. Está aqui?
– Si, donzela – disse üu cavaleiro. Veede-lo: stá aaquela freesta, falando com Dom Gualvam.
- Sim, donzela - disse um cavaleiro. - Vede-o: está naquela janela falando com dom Galvão.
Ela foi logo pera el e salvô-o. Ele, tanto que a vio, recebeo-a mui bem e abraçou-a, ca aquela era üa das donzelas que moravam na Insoa da Lediça, que a filha Amida del-rei Peles amava mais que donzela da sua companha i.
Ela foi logo para ele e saudou-o. Ele, assim que a viu, recebeu-a muito bem e abraçou-a, poruqe aquela era uma das donzemas que moravam na ilha de Lediça a quem a filha Amida do rei Peles amava mais que a donzela da sua companhia.
– Ai, donzela! – disse Lançalot –que ventura vos adusse aqui, que bem sei que sem razom nom veestes vós?
- Ai, donzela - disse Lancelote -, que ventura vos trouxe aqui? Que bem sei que sem razão não viestes.
– Senhor, verdade é; mais rogo-vos, se vos aprouguer, que vaades comigo aaquela foresta de Camaalot; e sabede que manhãa, ora de comer, seeredes aqui.
- Senhor, verdade é; mas rogo-vos, se vos aprouver, que vades comigo àquela floresta de Camalote; e sabei que amanhã, à hora de comer, estareis aqui.
Tem uma coisa que sempre me incomodou, tanto dos textos em espanhol quanto dos textos em português: a tradução de nomes. Acho totalmente desnecessário, mas de maneira recorrente, Arthur virou Artur e Arturo, sem falar no resto, como Gawain virando Galvão. Tem regras de tradução de nomes, explicando as equivalências entre partes de nomes, como por exemplo quando um nome vai terminar em "ão". Eu particularmente prefiro quando mantém os nomes no original do texto, seja qual for o idioma. Senão, qual a graça de Culwch visitar Ynis Widrin? A tradução de nomes mata toda a força do nome; sorte do Harry Potter que não deixou de ser Harry. Poderia ter virado Horácio Vasilhame.
Gostaram? Ano que vem tem mais. Até a semana que vem!