A tradução do Chrétien que tenho em mãos começa em este ponto em itálico, resumindo alguns acontecimentos como se fosse uma pausa entre dois atos de uma obra. Respeitando o texto, prossigo da mesma forma no ponto em que paramos na parte dois.
Acontecem então os preparativos de combate. Equipado com as armas pelas mãos da jovem, Eric a coloca imediatamente na garupa e dirige-se para a praça livre e ampla onde vê chegar o cavaleiro e a sua equipagem. Este convida a donzela a apoderar-se do pássaro que lá está sobre a percha. Voltando-se para sua amiga, Eric faz o mesmo. É o desafio, e em seguida acontece o primeiro grande combate singular dos romances da Távola Redonda. Seqüência de episódios selvagens. Vencido, o cavaleiro do anão corcunda implora graça. Recebe a imposição de ir ao castelo de Cardigan, colocar-se à mercê da rainha Guinevere e anunciar a próxima chegada do vencedor e sua companhia. Estes logo se põem a caminho.
Juntos, tanto cavalgam que ao meio-dia em ponto ante o castelo chegaram. Eram esperados em Cardigan. Para os ver de longe, os melhores barões tinham subido às janelas. Com a rainha Guinevere e o próprio rei estavam Kai e Parsifal, sire Gawain e Tor filho do rei Ares, Lucan o copeiro-mor e mais outros cavaleiros. Quando longe viram Eric, todos o reconheceram bem. Com a sua chegada a rainha e toda a corte sentem a mesma grande alegria, pois todos o amam igual.
Tão logo Eric chega diante do palácio, o rei desce a seu encontro e também a rainha. Todos lhe dizem "que Deus vos guarde!" e prezam e louvam a grande beleza de sua donzela. O próprio rei a segura para descer do palafrém. Faz-lhe a maior honra, levando-a pela mão até a grande sala de pedra do palácio. Atrás deles Eric e a rainha sobem da mesma forma, de mãos dadas. Diz ele:
- Senhora, trago-vos minha donzela e jovem amiga, de pobre vestimenta vestida. Assim ela me foi dada. Assim a trouxe até vós. É filha de um pobre vavassalo. Pobreza rebaixa muito homem bom. Seu pai é nobre e cortês, mas de bens quase nada tem. A mãe é senhora mui digna, pois possui como irmão um rico conde. Beleza e origem não serão motivos para que eu recuse esposar esta damizela. Pobreza tanto lhe puiu o camisão branco que nos cotovelos as duas mangas estão rotas. Contudo, se eu a quisesse fazer portar boas vestes, sua prima ofereceu-lhe roupa de arminho, seda, veiro ou petigris. Porém não consenti que outra ela vestisse enquanto assim não a vísseis. Minha gentil senhora, sabeis o que é preciso: suplico que penseis em vestir-lhe belas vestes.
Responde a rainha:
- Agistes bem. É justo que ela tenha das minhas roupas. Vou lhe dar uma das mais belas.
A rainha conduz a donzela ao seu quarto e ordena que lhe tragam uma túnica nova e o manto da outra roupa traspassada, feita na medida exata do seu corpo. A serva traz prontamente o manto e a túnica, que até nas mangas era forrada de branco arminho. No punho e no decote haviam utilizado (não é adivinhação) mais de meio marco de ouro batido e pedras de grande valor: azuis, verdes, violeta e sépia. A túnica era de grande riqueza. Não menos valia o manto de tecido fino, tendo ao pescoço duas zibelinas com presilhas que pesavam cada qual pelo menos uma onça. De um lado cintilava um jacinto e do outro um rubi mais luzente que uma candeia.
Em seguida, duas criadas levam a donzela a uma câmara privada. Desvestem-na do camisão. Ela coloca a túnica, envolve-se em sua vestimenta, cinge uma faixa com passamanes de ouro e recomenda que doem seu camisão, pelo amor de Deus. Depois veste o manto. A cor das peles parece ficar mais escura. A roupa assenta tão bem que a torna inda mais bela.
Com um fio de ouro, as duas aias ornam o cabelo louro; mas ele brilha mais do que o fio que o prende. Na cabeça colocam um aro de ouro lavrado de flores de diversas cores. Do melhor possível a adornam, com tanto cuidado que nada há para retocar. Ao pescoço passam-lhe duas fivelas de outro nigelado com engaste de topázio. Igual à bela e graciosa jovem creio que em terra nenhuma houvera, tanto a natureza bela obra fizera.
Ela saiu do aposento e veio ter com a rainha, que a elogia, pois ama a damizela e apraz-lhe que esteja bem ornada e bela. De mãos dadas vêm ambas diante do rei, que se ergue ao vê-las. Quando as duas entraram, tantos cavaleiros se puseram de pé no salão que eu não saberia nomear a décima parte, nem a vigésima, nem a trigésima. Mas vos poderei dizer os nomes dos melhores barões da corte, os da Távola Redonda, que são os mais valorosos do mundo.
(...) Quando a bela jovem forasteira vê todos esses cavaleiros que a olham com insistência, baixa a cabeça. Sente pejo (não é de estranhar), e sua face purpureja. Mas o pejo que a assalta inda mais bela a torna.
O rei a vê assim envergonhada e não quer se afastar. Toma-lhe suavemente a mão e a faz sentar à sua direita. À esquerda assenta a rainha, que diz ao rei:
- Sire, pelo que veio e creio, aquele que com as armas conquistou tão bela mulher em terra estranha deve ser bem-vindo à corte do rei. Agimos bem ao esperar por Eric. Agora podeis tomar o beijo à mais bela da corte. Creio que ninguém vos impedirá, pois ninguém ousará dizer: "Esta que aqui está não é a mais bonita das jovens, neste lugar e no mundo todo".
Responde o rei:
- Não é mentira. A esta jovem, se ninguém me contestar, darei as honras do Cervo Branco.
Depois, dirigindo-se aos cavaleiros:
- Senhores, que tendes a dizer? Afirmo que ela tem o direito às honras. Podeis dizer algo contra isso? Se alguém quiser opor resistência, fale agora o que pensa. Sou rei. Não devo mentir nem consentir em vilania, falsidade ou desmedida. (...). O costume de Pendragon meu pai, que era rei e imperador, devo guardar e manter, não importa o que me possa ocorrer. Ora, dizei-me de pronto e mui livremente todo o vosso pensar: esta jovem, embora não sendo da minha casa, não deve por bem e justiça receber o beijo do Cervo Branco?
Todos exclamam a uma só voz:
- Sire, por Deus e por sua cruz, podeis julgar com justeza que esta aqui é a mais bela; que possui mais beleza e brilho que o sol! Livremente podeis dar-lhe o beijo. Estamos todos acordes!
Então o rei volta-se para a jovem e a abraça, dizendo:
- Doce amiga, dou-vos minha amizade sem má intenção, vilania ou maldade. De todo coração vos amarei.
Assim, seguindo o costume, o rei Artur restaurou o privilégio que o Cervo Branco tinha em sua corte.
Chrétien passa então a relatar como Eric pede ao rei Artur o favor de ter suas núpcias celebradas na corte. Prontamente o rei chama os vassalos mais ilustres: Bilis, rei dos antípodas, senhor dos anões; Maheolas, senhor da ilha de Vidro; Guíngomar, senhor da ilha de Avalon e amigo de Morgana; Aguiflez, rei da Escócia; Garraz, rei de Cork, e David de Tintagel, e o senhor da ilha negra...
Ao receber sua mulher em casamento, Eric teve de a chamar pelo verdadeiro nome. (Nenhuma mulher será legitimamente esposada se não for chamada pelo nome certo.) Ninguém ainda o conhecia. Nesse momento, ficaram sabendo: Enide era seu nome de batismo. O arcebispo de Canterbury, que viera à corte, abençoa-a segundo o costume.
Quando toda a corte estava reunida, a ela vieram todos os menestréis da região hábeis em algum divertimento. Grande alegria reinava no salão. (...) Nada que possa rejubilar e alegrar é omitido nesse dia de núpcias. Soam tímbalos, tambores, cornamusas, pífaros, flautins e trompas e charamelas. Não há porta nem portinhola fechada.
O rei Artur não foi mesquinho: ordenou a seus padeiros, valetes e copeiros que dessem com grande plenitude, a cada qual segundo sua vontade, pão, vinho e carne de caça. Grande foi o regozijo no palácio; mas de muitos detalhes vos poupo, para narrar o júbilo e o prazer que houve no quarto e no leito. Para essa primeira noite juntos, Enide não foi raptada nem Brangiene posta no seu lugar. A rainha interpôs-se para a adornar e deitar, pois os esposos ardiam por estar juntos.
Cervo acossado que de sede ofega não deseja tanto a fonte, nem gavião faminto retorna ao reclamo de tão bom grado quanto os amantes desejam se conhecer nus. Naquela noite ambos resgataram o tempo de tão longa espera! Quando todos deixaram o quarto, eles concedem aos corpos seus direitos. Os olhos saciam-se de olhar, esses olhos que descortinam a via do amor, enviando ao coração a sua mensagem. E agrada-lhes tudo que contemplam. Após a mensagem dos olhos vêm a doçura - que vale bem mais - dos beijos que atraem o amor. Dessa doçura ambos experimentam e dessedentam os corações, tanto que com grande custo a interrrompem. O beijo é seu primeiro jogo; mas o amor que os prende torna a donzela mais ousada. Logo ela mais nada teme. Tudo sofreu, por mais que lhe custasse. E antes de levantar do leito perdeu o nome de donzela. De manhã, havia dama nova.
Que liiiiiiiiindooo!!!! Quero mais!!!!!
Acho muito poética a última seqüência de parágrafos que copiei do livro. Nela podemos adivinhar, sentir o fundo do texto original do Chrétien de Troyes, que era em francês, e em formato de verso. Na tradução perdemos muito disso, mas o texto foi redigido com tanto talento que mesmo após tantas transformações consegue emocionar e transmitir a força da mensagem. O amor é um gesto universal e atemporal, que revigora sua mensagem cada vez que duas pessoas se dizem "te amo". O sentimento entre Eric e Enide era esse: um vínculo de amor, que explodia na paixão desenfreada que os versos contam.
Desejo a todos meus leitores um ótimo Natal, uma deliciosa véspera rodeado de amigos, família e por que não, muitos presentes!
Até a semana que vêm!